domingo, 13 de janeiro de 2013

ANTES DO SERTÃO, O MAR: GLAUBER DESEMBARCA NA PRAIA DO BURAQUINHO

Por meio de um “golpe de estado” e com os apoios ideológicos de Lênin e Fidel, Glauber Rocha estreia no longa metragem e lança as bases do Cinema Novo. O resultado é Barravento (1961), um bem realizado exercício formal. O cineasta denuncia a alienação religiosa como responsável pela sujeição e miséria do povo brasileiro, representado por uma comunidade de pescadores do litoral baiano. 








Barravento

Direção:
Glauber Rocha
Produção:
Rex Schlindler, David Singer
Iglu Filmes
Brasil - 1961
Elenco:
Antônio “Pitanga” Sampaio, Aldo Teixeira, Luiza Maranhão, Lucy Carvalho, José Teles, Lídio Cirillo dos Santos, Rosalvo Plínio, Alair Liguori, João Gama, Antônio Carlos dos Santos, Dona Zezé, Flora Vasconcelos, Jota Luna, Élio Moreno Lima, Francisco dos Santos Brito, Dona Hilda, Adinora, Arnon, Sabá, Hélio de Olveira, Canjiquinha, moradores da aldeia de Buraquinho.




Glauber Rocha em 1960



Filmado em 1959, Barravento, primeiro longa-metragem de Glauber Rocha, teve montagem concluída dois anos depois. É o marco inicial do Cinema Novo. Propõe: 1) nova estética de realização; e, 2) a ação política para iluminar e resolver os profundos desajustes sociais brasileiros.


Sua gestação é interessante e tumultuada. Desde meados dos anos 50, a jovem intelectualidade baiana estava em estado de plena efervescência. Nesse contexto o filme veio à luz. Glauber Rocha, nome mais destacado do grupo, realizara, em 1959, dois curtas-metragens pouco vistos, os experimentais e simbolistas O pátio e A cruz na praça. Do segundo não restam vestígios. Próximo a Glauber circulavam Roberto Pires, Braga Neto, Rex Schlindler, Waldemar Lima e Luiz Paulino dos Santos, expoentes do núcleo responsável pela eclosão do Cinema Novo em solo baiano. Dos esforços desta turma nasceram três filmes fundadores, destinados a revelar e a discutir as contradições da sociedade brasileira. Barravento é o primeiro. Os demais, de 1962, são de Roberto Pires: A grande feira e Tocaia no asfalto. Foram todos produzidos pela Iglu Filmes, empresa fundada por um "capitalista abnegado": Rex Schlindler, associado a Braga Neto e David Singer.


Médico aposentado, empresário do setor imobiliário e pintor diletante, Schlindler mantinha estreitas ligações com o mundo das artes em geral. Glauber o conheceu quando realizava O pátio. Em meio a muitas conversas, levou-o a se interessar por cinema. Schlindler avançou além do esperado. Fundou a Iglu Filmes e escreveu os argumentos de A grande feira e Tocaia no asfalto. Passou à realização em 1962, com o curta Festival de arraias. Repetiu a experiência em Ziriguidum (1963), Fumo no cajueiro (1970) e Bahia por exemplo (feitiço, amor e candomblé) (1969).


A princípio, Barravento seria realizado por Luiz Paulino dos Santos, autor do argumento inicial e responsável pelas pesquisas sobre a música e o candomblé, fundamentais à trama. Suas experiências anteriores no cinema se circunscrevem à direção dos curtas Um dia na rampa (1956), com a colaboração de Glauber Rocha, e Invasão[1]. Fez também a fotografia de O pátio e auxiliou na realização de A cruz na praça.


Luiz Paulino ficou uma semana à frente de Barravento. Terminou afastado por uma manobra que Glauber, produtor executivo, considerou “golpe de estado”[2]. O pivô dos desentendimentos, pelo visto, foi o comportamento de Sônia Pereira, atriz principal e namorada do diretor. Ela posava de vedete nas locações, constrangendo os atores e a equipe técnica. Reclamações chegaram aos produtores, que resolveram dispensá-la. Glauber os atendeu de pronto. Luiz Paulino protestou e também foi afastado. José Telles de Magalhães, cogitado para substituí-lo, recusou. Diante da acefalia da realização, Glauber sugeriu Roberto Santos, Roberto Farias e Roberto Pires. Mas capitulou diante das propostas para ele mesmo levá-la adiante. Roberto Pires assumiu a produção executiva.


No entanto, parece que Sônia Pereira não passou de pretexto. Teria partido do próprio Glauber a decisão de tirar o filme das mãos de Luiz Paulino dos Santos. A causa da insatisfação: o roteiro, pouco crítico no tratamento da religião, ponto central da discussão proposta pelo filme. Já de acordo com o registro de Rachel Gerber, Glauber deu o “golpe de estado” para o cinema baiano decolar[3] e, principalmente, por não concordar com o eixo central da trama, uma história de amor narrada ao estilo dos dramalhões mexicanos: uma branca apaixonada por um negro, retirada por este da comunidade em que vivia, é abandonada na cidade e obrigada à prostituição. Passado um tempo, volta redimida ao grupo de origem[4]. É de Glauber o testemunho: “Assumi a responsabilidade de fazer o filme e me vi diante de um roteiro absurdo com o qual não concordava. Refiz o roteiro e tive que enfrentar a equipe que me enfrentava como usurpador”[5].


Sob nova direção, com a presença negra, solar e saudosa de Luiza Maranhão no lugar de Sônia Pereira, Barravento passa a contar uma história de pescadores do litoral baiano, prisioneiros, a um só tempo, da crença religiosa - que os condena ao misticismo, ao fatalismo e à passividade - e da exploração do empresário, proprietário da rede que utilizam. A intenção do diretor é clara. Denunciar a religião como fator de atraso, segundo a imagem que a concebe como simples “ópio do povo”. As primeiras imagens exibem um letreiro abordando as condições de vida da comunidade e enfatizando os prejuízos sociais, políticos e econômicos decorrentes da alienação religiosa. A seguir, explica dialeticamente o título: “Barravento é o momento da violência, quando as coisas da terra e do mar se transformam, quando no amor e no social ocorrem súbitas mudanças”.



Luiza Maranhão vive Cota


De lírico que era, Barravento se tornou veemente peça de acusação a partir da reorientação dada por Glauber Rocha. Transformou-se num “filme-manifesto”, repercutindo teses políticas da esquerda brasileira do período em que foi realizado. Nas entrelinhas é possível perceber o discurso isebiano[6], versão Álvaro Vieira Pinto, sobre a necessidade de se gestar uma “consciência nacional” para o país, passível de ser traduzida em vontade popular transformadora. Também estão presentes as formulações dos Centros Populares de Cultura da União Nacional dos Estudantes (CPC-UNE) sobre as possibilidades emancipadoras da cultura popular, desde que submetida ao crivo da crítica à ideologia que lhe oculta o caráter alienante. Isto explica um dos paradoxos de Barravento, tão impregnado e fascinado pelo misticismo do candomblé ao mesmo tempo em que lhe lança o olhar crítico da denúncia. De um ponto de vista a religião é considerada responsável pelo atraso e pobreza das massas. De outro, é observada como uma tradição pontuada de rituais belíssimos, que devem ser preservados, mesmo à custa da desvitalização.


Barravento critica a alienação religiosa em nome de uma ação política que conduza o povo ao encontro da revolução e, por conseguinte, da libertação. É o nascimento do Cinema Novo, cujas sementes foram plantadas por Alex Viany (Agulha no palheiro, 1952) e Nelson Pereira dos Santos (Rio 40 graus, 1955; Rio Zona Norte, 1957). Denuncia a fome e a exploração presentes no cotidiano de vastos setores da população brasileira. Mas faz isso propondo também uma nova maneira de fazer cinema, capaz de emancipar a cinematografia brasileira da vontade de ser aquilo que não é e não pode ser, segundo Glauber Rocha: arte, segundo a concepção européia; glamour e artificialismo, na visão hollywoodiana. A miséria física brasileira é a causa da nossa miséria intelectual e artística, afirma o diretor. Logo, o cinema no Brasil deve ser realizado levando em conta essas limitações e possibilidades. Em Barravento Glauber estabelece o rascunho de ideias como “uma câmera na mão e uma idéia na cabeça” e do manifesto publicado em 1965 com o título de A estética da fome: “Confesso que a cada dia que marchava para a colônia (dos pescadores, locação do filme) descobria a política. Foi um encontro orgânico, vivencial, verdadeiro (...) e vi que a crise do cinema é associada e consequente da crise geral de fome que nos envolve. Por isso, em tese, o filme não pode ser arte, tem que ser manifesto (...). Somente um clima de paz pode gerar a poesia pura que muitos homens estabelecidos procuram. (...) Aquele convívio com os pescadores (...) abriu um horizonte novo na minha vida (...) e digo humildemente que poderia fazer de Barravento um poema de mar, coqueiros, auroras e exotismos. E de amor. Mas fiz deliberadamente uma fotografia de miséria”[7].



Naína (Lucy de Carvalho) no ritual religioso do candomblé


Ao denunciar a aguda exploração que vitima o brasileiro, Glauber também expõe as características étnicas dessa gente, negra em sua maioria, descendente de africanos escravizados, novamente marginalizados quando a economia colonial se reorganizou segundo padrões capitalistas. A libertação do povo é, acima de tudo, a emancipação do negro, acentua o diretor. Quanto a isso, Glauber vaticinava: do sentimento negro, o “maior do mundo”, nasce a vibração que extasia o brasileiro no carnaval e no futebol, “duas manifestações perigosas para os industriais da fome. Porque a mesma fúria pode explodir nas ruas. E, sem dúvida, marchamos para esta festa. O que primeiro precisamos tentar é dar ao negro consciência desta miséria e talvez acentuá-la o mais possível, como se acua um gato num beco. Foi assim que Fidel agiu com os camponeses cubanos. O tumor explodiu. A tese da covardia, da fraqueza e do servilismo dos pobres brasileiros está certíssima. Precisamos torná-los cientes do que são”[8]. Traduzindo: só a inteligência esclarecida e comprometida com a mudança tem condições de romper com a alienação e conduzir a massa, transformada em povo, ao esforço de libertação. Ela, por si só, diante das agruras da vida que leva, não possui autonomia para tanto. Compreensão mais leninista da questão social é impossível.


Há que tornar o explorado consciente da exploração de que é vitima; romper com sua condição alienada. Portanto, seguindo Lênin, a vítima não tem como se emancipar por conta própria. A consciência emancipadora deve vir de fora e sedimentar o terreno para o levante, nem que para isso tenha que se acentuar a situação de miséria. A dialética deixa de ser projeto do processo histórico para se tornar exercício organizador da vontade. Em Barravento, é Firmino (Sampaio, atual Antônio Pitanga) que desempenhará esse papel. Nascido e criado na comunidade de pescadores, tomou o rumo da cidade. Enquanto cavava a vida, muitas vezes nas atividades do submundo, envolveu-se com a intelectualidade orgânica de esquerda, adquirindo nova percepção da realidade e do mundo. O filme começa com o personagem atravessando as pedras e a areia da praia, retornando, depois de muito tempo, ao convívio com os seus. Não faz esse movimento por livre e espontânea vontade. Procura, conforme revela a Cota (Maranhão), um abrigo seguro ao cerco policial que se fecha sobre ele, agora que foi classificado com um termo “novo”, cujo significado desconhece: “elemento subversivo”.



Firmino (Antônio Sampaio, atual Antônio Pitanga), classificado pela polícia com um termo novo, cujos significados desconhece: "elemento subversivo".


A primeira coisa que se nota na relação de Firmino com a comunidade, tão logo se refaz o contato, é o estranhamento. O espectador percebe isso de imediato. O homem que volta às origens, paradoxalmente, não mais pertence ao lugar. A roupa é o primeiro elemento diferenciador: terno e chapéu brancos, contrastando nitidamente com a quase nudez dos pescadores, vestidos apenas de calção na conclusão de uma operação de arrastão. A linguagem termina por acentuar as diferenças: Firmino discursa enquanto fala, tem domínio da palavra, ao passo que seus antigos companheiros articulam frases curtas ou monossílabos. A exceção é Aruã (Teixeira), que logo reage à expansividade e alegria do recém chegado: “Deixa esse cara, pessoal. Firmino tá com a vida dele ganha. Não tá vendo pela roupa?”



Arrastão


Apesar de tudo, Firmino sente necessidade de se enturmar. Não consegue. Mas enquanto tenta, procura incutir novas ideias nas cabeças de sua gente, pois a primeira coisa que descobre é que, apesar de tanto tempo de ausência, nada mudou por ali. A pesca se faz do mesmo jeito. Pior de tudo é a repartição do produto: o Patrão (dono da rede que nunca é mostrado), explorador que mora fora, fica com quase 90% do pescado. Como se não bastasse, a rede está velha, quebradiça, e não há como trocá-la, pois isso custa caro e poderia comprometer os lucros da empresa. Firmino tenta reverter a situação, mobilizando os pescadores. Acredita que problemas humanos merecem soluções igualmente humanas. Procura subverter a imutabilidade da ordem ou, em termos revolucionários, levar a comunidade ao encontro da História. Mas sua palavra se choca com a força das tradições, principalmente com as crenças religiosas básicas da comunidade. Elas estão sedimentadas no carisma da liderança do Mestre (Lídio dos Santos). Dependendo dele, nada muda, pois as soluções aos problemas terrenos devem ser dadas pelos deuses, principalmente por Iemanjá. A Rainha do Mar protege os pescadores, principalmente Aruã, símbolo da síntese decorrente da contradição entre as soluções terrenas propostas por Firmino e o imobilismo da liderança do “Mestre”.



Os protegidos dos deuses: Naína (Lucy Carvalho) e Aruã (Aldo Teixeira)


Apesar de não simpatizar com Firmino, muito menos por suas ideias, Aruã quer mudanças, mas não tem forças para lutar contra o Mestre, pai adotivo que o recolheu, menino ainda, abandonado nas ruas da cidade. Além do mais, colocou-o sob a guarda de Iemanjá. Diante disso, a comunidade acredita que enquanto Aruã contar com as graças da Rainha, os homens terão sorte na pescaria e o fantasma da fome permanecerá afastado de seus casebres. Mais que isso seria ilícito pedir, o que só acentua o conformismo.


Firmino tenta levantar a comunidade de várias maneiras. Da primeira vez apela à sua capacidade linguística. Desenvolve o discurso da denúncia, expõe a situação de exploração. Contra a religião que gera a passividade e o fatalismo, impõe a força da palavra, do grito e do diálogo, construções humanas e históricas transformadas em manifesto contra o candomblé, os mitos tradicionais e a alienação. Mas nenhum ouvido o acolhe. Prega no vazio, sem conseguir traduzir seus signos em ação política. Decorre desse fracasso a decisão de desmoralizar Aruã, em quem reconhece capacidade de liderança em estado latente, mas impedida pelo Mestre de vir à luz. É necessário desacreditar Aruã frente à comunidade, para libertá-lo da passividade e trazer à tona o líder adormecido. Destruída a credibilidade do protegido da Rainha pela profanação de seu estado santificado, ele adquiriria liberdade para, em outra fase do processo, reconquistar e conduzir o povo embalado por outro tipo de crença, mais eficaz, baseada na ação concreta.


Não deixa de ser paradoxal (como é o próprio filme) que a primeira tentativa de Firmino para recompor a trilha de Aruã seja apelar para a religião que tanto critica. Mas nada consegue com o despacho encomendado. Decide, por fim, segundo seus próprios dizeres, “levantar um barravento à ponta de faca”. Corta a rede que custou aos pescadores tanto trabalho para remendar. Mais tarde, justifica-se perante Cota: “Foi por isso que cortei a rede. A barriga precisa doer mesmo. Quando tiver uma ferida bem grande todo mundo grita de vez. Pra mim Princesa Isabel é ilusão”.



Firmino (Antônio Sampaio) tenta libertar a comunidade do conformismo à religião


Com o principal instrumento de trabalho inutilizado e recolhido a mando do Patrão, resta aos pescadores o retorno aos antigos métodos de trabalho. A produtividade baixará. Mas Aruã ainda é protegido de Iemanjá. Essa crença é motivo para a comunidade se sentir segura. É quando Firmino força a cumplicidade de Cota para desprestigiar Aruã de vez. Ela seduz o rapaz, desacreditando o pacto que dele exigia permanente estado de castidade. No dia seguinte, Aruã falha na tentativa de salvar dois companheiros que se lançaram ao mar durante uma tempestade. Firmino o acusa, revelando a todos a profanação da noite anterior. Aruã perde o respeito dos companheiros. Sem lugar na aldeia, parte para a cidade em busca de trabalho, o mesmo lugar onde Firmino teve a cabeça transformada. Promete a Naína (Carvalho) voltar um dia, trazendo, além de dinheiro para a compra de nova rede, a esperança de novos tempos para a comunidade. A seqüência final mostra a partida de Aruã, cruzando o mesmo caminho que Firmino fizera ao chegar, no começo do filme.


Cota (Luiza Maranhão)


Barravento não demorou a render frutos, pelo menos no exterior. Apresentado no Festival de Karlovy Vary (Techecoslováquia), em 1962, ganhou o prêmio Opera Prima (“criação revelada numa obra de estréia”). No mesmo ano foi apresentado no Festival de Sestri Levanti, Itália. Em 1963 foi selecionado para o VII Festival de Cinema de Londres e marcou presença entre os 10 filmes escolhidos para o I Festival de Cinema de Nova York, inaugurando o Lincoln Center for the Performing Arts. Teve lançamento no Rio de Janeiro, em 1964, com exagerada mensagem publicitária que o anunciava como filme de “violência, sexo, suspense e fetichismo”, ostentando a “beleza satânica de uma mulher - Luiza Maranhão - no mais excitante nu do cinema”.


Uma análise convencional sobre a composição cinematográfica de Barravento conclui que é um filme claudicante. Mas isso pouco importa, principalmente em se tratando de obra que lança outro tipo de cinema, radicalmente diferente de quase tudo o que se via até então. Novos não são apenas os temas e conteúdos abordados. A forma também é nova. Provavelmente, é o filme brasileiro que mais aplicou as lições da dialética eisensteiniana[9] na elaboração dos planos que evidenciam oposições (físicas e humanas) e sínteses. Quanto a isso, é belíssimo, principalmente quando Glauber elabora tomadas que recompõem o conjunto homem-céu-terra-mar: o arrastão inicial, a chegada de Firmino, os pescadores conduzindo a rede para a reforma, o enterro de João. Entretanto, muito da concepção plástica do filme deve ser creditada ao fotógrafo Tony Rabatony, profissional egresso dos quadros da falida Companhia Cinematográfica Vera Cruz. Considerado excessivamente acadêmico, ficou sem lugar nas realizações seguintes do Cinema Novo. Rabatony, em Barravento, deixou a luz estourar, para ampliar os efeitos da claridade solar e quente do litoral.


Na discussão proposta o filme também é pioneiro. Pela primeira vez uma peça do cinema brasileiro trata da luta de classes, expondo agudamente algumas das nossas mazelas estruturais. É um belo filme, apesar de equivocado. Deposita excessiva ênfase na questão da liderança e esvazia a ação do povo de qualquer sentido revolucionário. Faz uma leitura pobre e generalizante da cultura, desprezando olimpicamente as mais elementares contribuições da Antropologia e da Sociologia da Religião.



Firmino (Pitanga) trama com Cota (Maranhão) um barravento à ponta de faca


Barravento conta com a participação especial de Dona Hilda nas cenas de candomblé orientadas por Hélio de Oliveira. Nas sequências de samba de roda e capoeira tomam parte Dona Zezé, Adinora, Arnon e Sabá. É o primeiro filme dos atores Luiza Maranhão e Lídio Cirillo dos Santos. Este, com o nome de Lídio Silva, interpretará Sebastião, o líder messiânico no filme seguinte de Glauber Rocha: Deus e o diabo na terra do sol.



Glauber Rocha na câmera de Barravento


Roteiro e diálogos: Glauber Rocha, José Teles de Magalhães. Argumento: Glauber Rocha. Argumento inicial: Luiz Paulino dos Santos. Fotografia (preto-e-branco): Tony Rabatoni. Música: Washington Bruno da Silva (samba de roda e capoeira), Batatinha (samba). Continuidade: Marina Magalhães. Montagem: Nelson Pereira dos Santos. Cenografia: Hélio Lima. Som: Hélio Barrozo Neto, Oscar Santana, Atlântida. Ruídos: Geraldo José. Corte do negativo: Paula Gracel. Produção executiva: Roberto Pires, Edmundo Albuquerque. Diretor de produção: José Teles de Magalhães. Assistentes de direção: Álvaro Guimarães, Waldemar Lima. Operador de câmera: Luiz Carlos Barreto. Laboratório de imagem: Líder Cinematográfica. Assistente de fotografia: Waldemar Lima. Fotografia de cena: Élio Moreno Lima. Maquinistas: Plínio, Miltinho. Letreiros: Calasans Neto. Apresentação: Rex Schlindler, Braga Neto. Tempo de exibição: 80 minutos.




(José Eugenio Guimarães, 1978; revisto e atualizado em 1997)



[1] Não foi possível precisar a data da realização.
[2] GERBER, Rachel. Glauber Rocha: uma obra pessoal. In: GERBER, Rachel et al. Glauber Rocha. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977. p. 26.
[3] Ibidem.
[4] Ibidem.
[5] Ibidem.
[6] Alusivo ao ISEB – Instituto Superior de Estudos Brasileiros.
[7] ROCHA, Glauber apud GERBER, Rachel. Glauber Rocha: uma obra pessoal. In: GERBER, Rachel et al. Op. cit. Parênteses de José Eugenio Guimarães.
[8] ROCHA, Glauber. Experiência Barravento: confissões sem moldura. Diário de Notícias. Salvador, 25-26/dez.1960.

[9] Referência a Sergei M. Eisenstein, cineasta russo, realizador de O Encouraçado Potemkin (Bronenosets Potymkin, 1925), Outubro (Oktyabre, 1927), Alexander Nevsky (Aleksandr Nevskii, 1938) e Ivã, o terrível (Ivan Grozny, 1944-1945).

9 comentários:

  1. Produzir... dirigir... botar a mâo na câmera e filmar como se fosse uma questao de vida ou morte. E não era ? Cinema visceral. Glauber é um desassossegado. Pergunta pelo Brasil dos brasileiros, pergunta pela brasilidade de um país que vive a cópia como se fosse o original. Ritmos, sons, atabaques, falas populares, o poder, a cidade, a aldeia de pescadores, o sol inclemente no estouro da luz, a gente quase vê o vento. Sinestesia. A pesquisa como parte integrante do filme. Nâo se esconder a oficina. Glauber é um artesão da forma. Conteùdo revolucionário com forma revolucionária. Entendeu Maiakovski perfeitamente bem. Oswald é antropofágico de mala e cuia. Salve Oswald de Andrade ! Cinema de autor sim, com recibo marcado. Não esse cinema bossal que enchem os cinemarks e moviecoms com cheiro azedo de pipoca e baldes de refri. Cinema de autor é o que estamos precisando. Again. Por que não? Mais uma vez, volto ao belo texto do cineasta russo Tarkovski:

    " O CINEMA É A ÚNICA FORMA DE ARTE EM QUE O AUTOR PODE SE CONSIDERAR COMO O CRIADOR DE UMA REALIDADE NAO CONVENCIONAL, LITERALMENTE, O CRIADOR DE SEU PRÓPRIO MUNDO. NO CINEMA, A TENDÊNCIA INATA DO HOMEM PARA A AUTO-AFIRMAÇÂO ENCONTRA UM DOS SEUS MEIOS DE REALIZAÇÃO MAIS COMPLEXOS E DIRETOS. UM FILME É UMA REALIDADE EMOCIONAL, E É ASSIM QUE A PLATÉIA O RECEBE - COMO UMA SEGUNDA REALIDADE".

    Luis Estrela de Matos

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Pois é, Luís...

      Como sinto falta do Glauber e de toda a sua visceralidade, de sua vocação incendiária e iconoclasta. Nem precisávamos concordar com as argumentações dele... Ele, saudavelmente, produzia uma provocação, chamando todo mundo às falas. Não havia calmaria com ele perto. A citação que você apresenta, do Tarkovski, cabe direitinho no Glauber. Gozado! Às vezes gosto de pensar que ele nos observa pela intermediação de Solaris. Refiro-me ao filme do Tarkovski, evidentemente!!!!!! O outro, realizado pelo Soderbergh... Tradução? Traição? Banalização?

      Abraços.

      Excluir
  2. Eugênio, concordo com você. Sua análise do filme é profunda e sábia. Glauber iria rir muito dos comentários paralelos.

    Abraço,

    Julio César de Miranda

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Olá, Júlio!

      Obrigado! Gostaria de saber o que Glauber pensaria do que escrevi. Se vivo, o que estaria filmando? Aliás, estaria filmando? Ainda haveria espaço para ele em meio a tanta pasmaceira?

      Abraços.

      Excluir
    2. Sem puxasaquismos aqui, o Glauber iria gostar de seu texto, Eugenio Guimaraes. Com certeza. Primeiro pela propriedade , e transparencia, com que voce fala dos assuntos da setima arte. Dos textos que eu ja li aqui em seu blogue o camarada fica com vontade de ver ( ou rever) os filmes. Entao a missao esta cumprida. O texto remetendo ao filme . Estabelece-se dialogo produtivo. Cade isso no jornalismo brasileiro? Onde andam os criticos de cinema deste imenso continente? Vixe ! E melhor eu me calar entao... Ha um jeito sincero e melancolico de dizer as coisas. Esse e o Eugenio.
      Luis Estrela de Matos

      Excluir
    3. Olá, Luís!

      Não há mais espaço para crítica no jornalismo brasileiro. Aliás, não há mais espaço para crítica em jornalismo algum. Nem para as notícias, seriamente tratadas, sobra espaço atualmente. Tudo é reduzido ao mais superficial dos tratamentos. Sempre me apavoro diante das reformas que os jornais sofrem nos formatos. Ultimamente, isso vem acontecendo frequentemente. A cada reforma menos espaço sobra para o texto e, logicamente, para a reflexão. Não é culpa dos jornalistas, muito menos dos críticos. Existem muitos bons críticos por aí. Mas, a eles, é concedido menos espaço, cada vez mais.

      Tenho saudades do Caderno B do "Jornal do Brasil" dos anos 60 e 70. Nele, Ely Azeredo e José Carlos Avellar brilhavam na crítica. Você nem precisava gostar do que escreviam. Mas dava gosto ver o espaço e o tempo) que tinham para abordar um filme, as argumentações que teciam... Geralmente, uma página inteira era dedicada à exposição de ambos. Um ocupava a parte superior da dobra, o outro a inferior. Era o tempo em que as letras dos jornais eram menores. Hoje, as letras são enormes e as fotografias, que eram economicamente utilizadas e dispostas, também aumentaram de tamanho e se multiplicaram pela página. Esta também ficou ficou menor.

      Os jornais, hoje, destinam-se cada vez mais aos açougues e à parte inferior das gaiolas de passarinhos.

      Abraços.

      Excluir
  3. Por conta do Barravento "do Eugênio". Fui assistir, com a devida calma, e sozinho, O terra em transe... Jardel Filho, Glauce Rocha, Carvana, José Lewgoy, Paulo Gracindo, Paulo Autran, Francisco Milani, Jofre Soares, A Danusa ( só pode ser a Leão...)... que turma!!! O Glauber surta de verdade e seus surtos realmente parecem ter a marca de uma genialidade. Parque Laje dos anos 60 ! Barra da Tijuca livre dos homens e dos shoppings... As praias desertas de Tom Jobim se fazendo imagem. Glauber delira em alta voltagem. Tudo delira ali. Anti-naturalista, Glauber me pareceu franco-atirador de verdade. Tiros na Esquerda e tiros na Direita. Por demais simbólico? Quero dizer, por demais alegórico? E a vida... o que é? Jardel Filho impagável...Sua força, sua marca... ele imprime na história o estigma do poeta na modernidade. Sem lugar. Há que se saber ver um filme. Estou aprendendo. Até
    Luis Estrela de Matos

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Caro Luís,

      “Terra em transe”, para mim, é o melhor filme do Glauber. Pela primeira vez, no cinema, um realizador teve a lucidez de perceber como esse país é complicado, isso numa época em que muitos pareciam ter a fórmula correta para reparar os nossos males estruturais. Glauber, nos seus surtos, vê uma complexidade que ridiculariza das facilidades e esquematismos das fórmulas de ocasião. Ele não é um franco atirador. Muito ao contrário. Ele apenas se integra, como artista criador de imagens, à realidade de um país que parece produto de um delírio. É essa pulsação que o filme transmite... “Terra em transe” é a alegoria de um país de possibilidades, onde muito há a fazer, a ponto de qualquer tentativa de construção se tornar, mesmo, uma impossibilidade. Diante disso, fica-se atônito, perdido, como o personagem de Paulo Martins.

      Abraços

      Excluir
  4. A religião levando ao imobilismo.
    Misticismo e pobreza.A beleza dos cantos dos pescadores e as mortes no mar! Bahia,Brasil

    ResponderExcluir