domingo, 12 de maio de 2013

ILUSÕES BRASILEIRAS ESPELHADAS PELA ALMA FEMININA DEVASSADA PELO OLHAR MASCULINO

Valendo-se de referências pasolinianas, glauberianas e surrealistas de Buñuel, Das tripas coração (1982), terceiro longa-metragem de Ana Carolina Teixeira Soares, é obra transgressora, considerando-se principalmente o momento da realização, quando o regime de 1964 chegava ao fim. Extremamente alegórico, alimenta-se de imagens românticas e modernistas misturadas na carnavalização da realidade. Aparentando explorar de forma cirúrgica os desvãos da alma feminina a partir de um devaneio masculino, também enfoca o Brasil, situando-o metaforicamente na encruzilhada de suas possibilidades e frustrações numa época perpassada por otimismo e perplexidade. A apreciação é de 1984.








Das tripas coração

Direção:
Ana Carolina Teixeira Soares
Produção:
Veze Zahram, Jacques Eluf
Crystal Cinematográfica, Taba Filmes, Embrafilme
Brasil — 1982
Elenco:
Dina Sfat, Xuxa Lopes, Maria Padilha, Antônio Fagundes, Cristina Pereira, Ney Latorraca, Christiane Torloni, Nair Belo, Myrian Muniz, Eduardo Tornaghi, Othon Bastos, Ana Maria Abreu, Solange Alfane, Bibi Amaral, Vera Barbosa, Patricio Bisso, Nereide Bonamico, Clotilde Borges, Cláudia Damácio, Isadora de Farias, Emile Edde, Cristina Ferreira, Denise Franco, Alvaro Freire, Stela Freitas, Rita Galvão, Sandra Ghiraldini, Silvana Ghiraldini, Janini Goldfeld, Jobelsina Gomes, Nícia Guerreiro, Maria Guimarães, Mira Haar, Célia Helena, Iacov Hilel, Isa Kopelman, Suzana Lakatos, Carla Leirner, Margareth Lemos, Marli Levin, Vera Souza Lima, Lúcia Machado, Noêmia Mandelbaum, Lucélia Maquiavelli, Eliza Monteiro, Edna Meire Moraes, Rosaly Moreno, Zica Neiame, Áurea Novaes, Carmen Pereira, Thelma Rebello, Ivete Rocha, Noeli Santisteban, Noêmia Scaranelli, Isabela Secchim, Lúcia Segall, Ilana Sherl, Raquel Silber, Maria do Carmo Sodré, Renata Sofredini, Simone Sofredini, Wilma So So, Carmem Tavares, Deborah Zilber.



Ana Carolina Teixeira Soares


Um colégio tradicionalista, de orientação católica, voltado exclusivamente ao ensino de moças é o cenário único à ação de Das tripas coração terceiro longa-metragem[1] de Ana Carolina Teixeira Soares, ou simplesmente Ana Carolina, como costuma ser registrada. A instituição — há muito operando no vermelho, com suspeitas de desvios de recursos —, prestes a fechar as portas, recebe a visita de um interventor (Fagundes). O local, transferido a uma incorporadora, dará lugar a moderno e eficaz empreendimento comercial — antecipa o personagem para a aluna curiosa e inconveniente que se adianta para recebê-lo à entrada do estabelecimento.


Enquanto aguarda a reunião com as responsáveis pela instituição, o interventor adormece durante breves cinco minutos — tempo suficiente para um devaneio surrealista, anárquico e visceral. Sonha que é o professor Guido. Como tal, envolve-se sem meias medidas com alunas, diretoras, inspetoras, professoras e faxineiras por salas de aula, gabinetes, corredores e espaços religiosos. No delírio, todo o colégio, em seus aspectos humanos e geográficos, é devassado. O ambiente explode na exposição e liberação de desejos reprimidos no campo da sexualidade feminina a partir do ponto de vista masculino. A irracionalidade impera. Padrões de decoro, códigos elementares de conduta, o respeito à autoridade e a reverência que cerca os símbolos, rituais e discursos religiosos são submetidos à implacável transgressão e revirados pelo avesso.


O interventor (Antônio Fagundes) se transforma no professor Guido durante o transgressor devaneio decorrente de um sono de cinco minutos

Das tripas coração parece inspirado em Teorema (Teorema, 1969), de Pier Paolo Pasolini. Nesse filme, um anjo — ao qual o personagem de Fagundes se assemelharia — irrompe no seio de uma família burguesa de alta extração e altera radicalmente a vida de todos os seus membros. Mas a recorrência ao poema Balada, de Mário Faustino — que teve alguns versos servindo de epígrafe[2] ao personagem Paulo Martins (Jardel Filho) de Terra em transe (1966), de Glauber Rocha — também comunica a realização de Ana Carolina com o clima delirante desse filme maior do cineasta baiano. Sem esquecer as alusões ao surrealismo de Luis Buñuel, igualmente presentes.



Todos os personagens extravasam sensações à flor da pele

Aliás, no tocante ao andamento e à encenação, Das tripas coração é explicitamente surrealista. Vale-se de referências ao romantismo e ao modernismo, misturadas na carnavalização da realidade. O roteiro, concebido pela diretora, não permite tergiversações. A abordagem é radical. Enquanto aparenta expor de forma tão cirúrgica os profundos desvãos da alma feminina pelo ponto de vista de um devaneio masculino, o filme também se permite a uma interpretação do Brasil, carregada de alegoria, condizente com o contexto histórico-político da realização.


Assim, o colégio de moças — explodindo em desejos e carências— surge como ilustração francamente irreverente de um país estacionado numa desconfortável encruzilhada, impossibilitado de decidir os rumos a tomar quando do esgotamento do regime militar implantado à força em 1964. Nesse momento tão particular, dominado pela perplexidade, racionalidade e realidade se dissolvem. Parecem ceder lugar às irresistíveis tentações da natureza, pulsando num ambiente de repressão, permissividade e impotência, com personagens à deriva, incapazes de firmar padrões mínimos de convívio pela adoção de um contrato garantidor de terreno firme e seguro ao curso das relações. As altas temperaturas que se elevam do fundo das fechadas matas tropicais — que tanto povoaram os mitos do “Brasil Grande” de integralistas e militares —; o ufanismo presente na vã tentativa de forjar uma identidade nacional em meio aos restos do colonialismo escravista constantemente reatualizados; e os odores, suores e miasmas que tanto justificaram as explicações de fundo determinista para a paralisia do país, tudo isso parece aflorar ao mesmo tempo, desorientando personagens irrefreáveis na exposição de desejos e frustrações.


O médico do colégio (Eduardo Tornaghi) é vigiado pela inspetora Nair (Nair Bello) durante um exame

O colégio/país é uma nau sem rumo, apesar das sensações enganadoramente contrárias comunicadas por palavras e cantos. Assim, soam profundamente irônicos e desprovidos de qualquer sentido os ecos do Hino do Estudante do Brasil[3] ("Estudante do Brasil!/Tua missão é a maior missão:/Batalhar pela verdade,/Impor a tua geração!/Marchar, marchar para a frente!/Lutar incessantemente!/A vida iluminar, Idéias avançar!...") ou a profissão de fé da personagem Muniza (Muniz), alegando com tanta convicção que é “(...) uma mulher que se casou com a realidade” — apesar de jamais ter abandonado seu casulo e se mostrar incapaz de compreender “o sobe ou o não sobe” das coisas.


As inspetoras Nair (Nair Bello) e Muniza (Myrian Muniz)

Estão em evidência, mesmo, a desesperança e a falta de rumo explicitadas em versos tão taxativos e enfáticos como “No meio-dia da minha vida/Da juventude tão querida/Dos anos que não voltam mais/No meio-dia da minha vida/Eu quero mesmo é matar meus pais...” ou o acesso da professora de química (Torloni), debatendo-se com os fantasmas da carência sexual; a falta de modos do padre (Latorraca), urinando atrás de estátuas e levando explicitamente a mão ao sexo durante a missa. O ato litúrgico é ainda perturbado pela inusitada presença de um judeu à procura de sua sinagoga; por figurinhas pornográficas passadas de mão em mão; e pela atitude sacrílega da estudante urinando entre as alas de bancos da capela, no auge da celebração. Depois disso, o culto é abruptamente encerrado com todos cantando o hino Prá frente Brasil, composto por Miguel Gustavo para exaltar a Seleção Brasileira de Futebol de 1970 e oficiosamente adotado como tema do “Brasil Grande” das ilusões desencadeadas durante os sangrentos e duros anos da ditadura do General Emílio Garrastazu Médici. Ao longo desse período, foram legados ao país incontáveis elefantes brancos na forma de monumentos de utilidade duvidosa que tanto nos assombram, tal qual o piano de difícil transporte, que constantemente impede a livre circulação dos personagens de Das tripas coração.


Guido (Antônio Fagundes) e as diretoras do colégio: Renata (Dina Sfat) e Míriam (Xuxa Lopes)

Míriam (Xuxa Lopes) e Renata (Dina Sfat)

Por breves momentos, Nair (Belo), inseparável parceira de Muniza, parece, num lampejo, adquirir clara percepção das causas que geram tanta inquietação entre as alunas. É o momento em que endereça um clamor aos céus e implora, penalizada: “Chega senhor, solta essas pombinhas!”. Em outro momento, porém, como que oferecendo um desesperado contraponto, as mesmas alunas declamam o “Nada pode me penetrar” em forma de oração, quase em paralelo às imagens metafóricas da serpente solta no paraíso para lançar o pecado no mundo, origem do trabalho e da racionalidade. Mas nada disso parece ter efeitos sobre estruturas tão firmemente apoiadas em meio às marés irrefreáveis de dissolução e decadência. Muniza e Nair continuam emitindo gritos de desesperada perplexidade; as faxineiras, histéricas, assediam o libertino zelador Flanela (Freire); a professora de psicologia (Helena) entrega os pontos, depois de se reconhecer incapaz de contribuir para a instauração do mínimo de ordem e decoro no estabelecimento; as diretoras Renata (Sfat) e Miriam (Lopes) literalmente se desnudam pelos corredores enquanto confabulam sobre seus desejos e intimidades. No meio de tanta permissividade e liberações escatológicas, ouvem-se tratamentos de Villa Lobos para temas populares. Toda a encenação tem o clima de apoteose, mas os resultados finais resumem fracasso e frustração.


Das tripas coração não conta propriamente uma história. Apresenta situações solidamente costuradas pela discreta montagem de Roberto Gervitz e Sérgio Toledo Segall. A direção de fotografia de Antônio Luiz Mendes Soares e o trabalho de câmera são trunfos do filme. Captam com a devida objetividade as exposições tão subjetivas. Não se sentiram tentados a tomar parte dos delírios, mas somente a registrá-los. Portanto, ponto para a firme direção de Ana Carolina Teixeira Soares, que contribuiu decisivamente para facilitar a adesão do público à realização. Mesmo assim, não é fácil assistir a Das tripas coração. É dessas peças que parece não admitir avaliações apoiadas no meio termo. Diante das imagens, o espectador poderá apenas gostar delas ou não. O “mais ou menos” não terá lugar. Evidentemente, as avaliações positivas decorrerão de espectadores de espírito relativamente aberto, devidamente imunizados aos choques que poderão resultar dos aspectos iconoclastas de muitos diálogos e planos. Terminantemente, Das tripas coração não é recomendado à visão de moralistas. Estes, certamente, não resistirão a tanta provocação. Abandonarão a sessão pela metade, apesar da advertência exposta no cartaz de divulgação do filme, por exigência do Conselho Superior de Censura — que o liberou na íntegra, depois de ameaçá-lo com quinze minutos de cortes: "Este filme apresenta uma visão delirante, que não corresponde à realidade. Não se trata, pois, de uma tese que se imponha a título de proposta. Neste sentido, o filme não agride crenças e visões do mundo, cujos símbolos exibe".


Míriam (Xuxa Lopes)

Das tripas coração foi indicado ao prêmio de Melhor Filme no Festival de Cinema Fantástico do Porto (Portugal), em 1984, e ao Kikito de Ouro de igual categoria no Festival de Gramado de 1983. Neste certame, a dupla Roberto Gervitz e Sérgio Toledo Segall recebeu o Kikito de Ouro pela Melhor Montagem; e Antônio Luiz Mendes foi agraciado com o Prêmio Edgar Brasil para Melhor Direção de Fotografia. No XXII Festival Internacional do Filme de Cartagena (Colômbia), 1982, foi agraciado com o India Catarina de Melhor Roteiro. A Associação Paulista de Críticos de Arte, em 1982, entronizou Ana Carolina Teixeira Soares na categoria de Melhor Direção.


Renata (Dina Sfat) e Guido (Antônio Fagundes)

Lima Duarte, Ary Fontoura, Regina Duarte e Maria Schneider (!) foram cogitados, respectivamente, para os papéis que terminaram nas mãos de Antônio Fagundes, Álvaro Freire, Dina Sfat e Xuxa Lopes. Ainda bem que Dina Sfat ficou com a personagem Renata. Fico pensando se a pudica Regina Duarte teria suficientes desenvoltura, discernimento e voz para interpretá-la e só consigo antecipar resultados os mais desastrosos. Quanto à tentativa de importar Maria Schneider — partner de Marlon Brando em O último tango em Paris (L’ultimo tango a Parigi/Le dernier tango à Paris/Last tango in Paris, 1972), de Bernardo Bertolucci — para viver Miriam, francamente, não há como entender. Vivas para Xuxa Lopes! Aliás, vivas para todo o elenco, principalmente para a impagável Myriam Muniz.


Guido (Antônio Fagundes), Renata (Dina Sfat) e Míriam (Xuxa Lopes)


Argumento e roteiro: Ana Carolina Teixeira Soares. Co-produção: Anibal Massaini Neto. Produção executiva: Francisco Ramalho Jr. Direção de produção: Lisa Monteiro. Música: Paulo Herculano. Direção de fotografia (cores): Antonio Luiz Mendes Soares. Montagem: Roberto Gervitz, Sérgio Toledo Segall. Figurinos: Cristina Bernardes. Maquiagem: Sônia Rubene. Gerente de produção: Liza Monteiro. Direção de arte: Cristina Buarque de Holanda. Assistentes de direção: Carlos del Pino, Jayme Matarazzo. Arquiteto colaborador: Augusto Lívio Malzoni. Assistentes de direção de arte: Ivan Novais, Miki Stedile. Edição de efeitos sonoros: Antônio César, Geraldo Ribeiro. Ruídos de sala: Ubirajara de Castro. Gravação de som: Carlos dos Santos, Pedro Siaretta. Mixagem da regravação de som: José Luiz Sasso. Eletricista-chefe: Paulo Alves. Assistentes de maquinário: Rubens Manoel da Silva, Ricardo Garcia, Luiz Antônio Silva. Assistente de câmera: Felipe Daviña. Fotografia de cena: Alexandre Fonseca, Nina Guerreiro. Maquinário: Paraná. Guarda-roupa: Marico Kawamura. Assistentes de montagem: Maximo Barro, Vera Freire, Gerson Rodrigues. Assistentes de produção: Roberto Bianchi, Beth Ganymedes, Geórgia Matarazzo. Secretárias de produção: Rosa Ângelo de Souza, Elza Brasil Dos Santos, Betina Ygel Hoffenberg, Guilherme Menzi. Continuidade: Maria Sílvia Moreira. Tempo de exibição: 108 minutos.

(José Eugenio Guimarães, 1984)




[1] Até o momento, são estes os filmes de Ana Carolina Teixeira Soares: Indústria (1969), documentário em curta-metragem; Getúlio Vargas (1974), documentário em longa-metragem; Mar de rosas (1977); e Nelson Pereira dos Santos saúda o povo e pede passagem (1979), documentário em curta-metragem.
[2] “Não conseguiu firmar o nobre pacto/Entre o cosmos sangrento e a alma pura./(...)/Gladiador defunto mas intacto/(Tanta violência, mas tanta ternura)”
[3] Letra de P. Barbosa e Aldo Taranto; música de Raul Roulien.

Um comentário:

  1. Achei bem colocada a observação sobre uma possível (desastrosa) atuação de Regina Duarte...eu tive a felicidade de assistir no teatro Ipanema uma peça com a Dina Sfat. Maravilhosa intérprete!
    Minha mãe gostava de cinema e teatro e sempre que podia ela me levava ao cinema ou teatro. Veio dela, da minha mãe esse meu fascínio pela arte e cultura embora eu não tenha literalmente chegado a lugar nenhum...
    Suas resenhas são tão perfeitas que nem preciso assistir ao filme, já curto logo!
    Beijos, Eugenio.

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