domingo, 9 de fevereiro de 2014

CHAPLIN RETORNA AO PASTELÃO APÓS DEFINIR OS CONTORNOS DO SEU PERSONAGEM EMBLEMÁTICO

A Essanay é a companhia que abrigou Chaplin ao término de seu contrato com a Keystone de Mack Sennett. Na nova casa, realizou e estrelou 14 filmes curtos. Também encontrou mais liberdade para criar e experimentar. Como resultado desse conforto, definiu em O vagabundo (The tramp) — sexto filme concebido para a empresa — os contornos do seu personagem emblemático. Ao mesmo tempo, tornava o humor mais contemplativo e reflexivo. No entanto, a obra seguinte, Carlitos na praia (By the sea), representa uma involução. É um retorno ao desvairado burlesco típico da Keystone. Vai ver, Chaplin pretendia reencontrar a simples e descompromissada diversão à larga. Mas o resultado está longe de ser uma peça de pouca relevância no 'museu do cinema'. Ao cinéfilo interessado também no desenvolvimento da arte fílmica, é sempre interessante verificar como o gênio de Chaplin criava em meio à exiguidade dos materiais e da inspiração, levando-se em conta, ainda mais, os progressos que vinha obtendo. 






Carlitos na praia
By the sea

Direção:
Charles Chaplin (não creditado)
Produção:
Jess Robbins (não creditado)
The Essanay Film Manufacturing Company
EUA — 1915
Elenco (não creditado):
Charles Chaplin, Edna Purviance, Billy Armstrong, Bud Jamison, Ben Turpin, Margie Reiger, Charles Insley, Leo White, Paddy McGuire.



Charles Spencer Chaplin



Também conhecido no Brasil como Carlitos à beira-mar, este curta de apenas um rolo é a sétima realização de Chaplin na Essanay, para onde migrou ao término do contrato com a Keystone de Mack Sennett, que o lançou no cinema e na qual atuou em 35 filmes rodados em 1914.


Chaplin realizou e estrelou 14 produções durante o período Essanay, o que compreende o ano de 1915. Seu novo emprego (His new job), Carlitos se diverte[1] (A night out), Campeão de boxe[2] (The champion), Carlitos no parque (In the park), Carlitos quer casar[3] (The jitney elopement) e O vagabundo (The tramp) antecedem a By the sea.


Carlitos na praia pode ser visto como um retrocesso ou um saudável interregno na carreira de Chaplin. O título que lhe é imediatamente anterior, O vagabundo, coroa um esforço na definição do personagem que seria sua marca registrada até O grande ditador (The great dictator, 1940). Nesse curta de dois rolos, Carlitos se apresenta plenamente consolidado. O tom desvairado da comédia pastelão — tão característico da Keystone — começa a dar espaço ao humor mais contemplativo e reflexivo. O riso se combina à amargura. O patético invade a cena. Carlitos, em sua vida solta e desregrada, deixa de ser o anárquico representante da liberdade, mas alguém marcado pelas limitações decorrentes da esfera da necessidade. A existência passa a depender de esforços que exigem sangue, suor e lágrimas. A felicidade é mais uma miragem distante.


O vagabundo (Charles Chaplin) contracena com o marido (Billy Armstrong) insatisfeito 


Carlitos na praia devolve Chaplin ao pastelão. É uma descompromissada comédia maluca movida a equívocos, repleta de tombos, agressões físicas e revolta de equipamentos e utensílios. A câmera, na maioria das vezes, praticamente reencontra sua mirada estática na elaboração de planos fixos. A movimentação se deve aos cortes que abrem e fecham o enquadramento ou aos esforços dos personagens. É tudo muito simples e rotineiro. Mesmo assim, se o espectador conseguir a proeza de se abstrair, fazendo-se contemporâneo da realização, encontrará uma peça cativante. Além de dirigi-la, Chaplin também elaborou o roteiro e cuidou da montagem. As filmagens aconteceram em um único dia, nos cenários ainda desertos de Los Angeles, em particular nos arredores de Crystal Pier.


É dia de vendaval. O marido (Armstrong) está na praia a contragosto, premido pela esposa (Reiger) que logo se afasta. Carlitos se aproxima, saboreando uma banana. Escorrega na casca que lançou fora descuidadamente. A ventania arranca das cabeças todos os chapéus. Para recuperá-los, arma-se uma confusão entre o personagem de Chaplin e o contrariado marido. Trocam chutes e tabefes em meio a escorregões e trombadas. Até piolhos entram em cena. Outra mulher (Purviance) passa ao largo do tumulto e ganha a atenção de Carlitos. É companheira do mal humorado grandalhão de cartola (Jamison). Chega um policial (McGuire) para dar fim à contenda na areia. É nocauteado e pisoteado. Carlitos e o marido, agora amigos, resolvem celebrar na lanchonete. Reiniciam a briga, esfregando sorvetes um na cara do outro quando se descobrem sem dinheiro para o pagamento da conta. Sem querer, o grandalhão se envolve no tumulto. Outro policial (Van Pelt) tenta apaziguar os ânimos. Carlitos consegue se livrar do imbróglio para cortejar a personagem de Purviance. Depois, envolve-se com a esposa de seu oponente. Termina nas areias da praia, num banco, acuado por todos os casais. O filme chega ao fim com os personagens lançados abruptamente ao chão.


A esposa (Mergie Reiger) e o marido (Billy Armstrong)

O vagabundo (Charles Chaplin) e o marido (Billy Armstrong) na confusão dos chapéus 

Chaplin retorna ao burlesco e contrai piolhos em Carlitos na praia


No início da carreira Chaplin declarou que suas comédias curtas exigiam apenas uma moça, um banco e um policial. Em Carlitos na praia todos esses elementos surgem em dobro. O resultado final não é dos mais alvissareiros. Porém, cabe ressaltar: há aqui um tipo de humor dos mais elementares, tornado rasteiro e obsoleto pelo avanço do tempo. Mas é nisso que reside a graça de assistir Carlitos na praia quase 100 anos após realizado. Para não se sentir simplesmente enfastiado diante de uma peça de antiguidade, preservada pelo 'museu do cinema', o espectador deve se valer da sensibilidade histórica e procurar entender o significado de filmes como as comédias curtas de Chaplin e dos elementos que atraíam o público da época.


Outro casal, vivido por Edna Purviance e Bud Jamison


Apesar de tudo, Carlitos na praia não é obra totalmente envelhecida, com interesse apenas para cinéfilos esforçados e historiadores. A realização, pelo que sei, é pioneira na utilização de recursos humorísticos que seriam utilizados à exaustão em outros filmes cômicos, inclusive pelo próprio Chaplin. Pela primeira vez se provoca riso com o escorregão na casca de banana, com toda a graça que se poderia extrair desse truque. Outro achado são os chapéus atados aos corpos com o auxílio de barbantes. O vento não os leva simplesmente para longe. Rodopiam nas proximidades dos personagens — o que amplia a inutilidade dos esforços despendidos na tentativa de recuperá-los, ainda mais quando os fios se embaraçam. Estes também auxiliam na graça quando utilizados nas reverências que Carlitos endereça às mulheres, sem se valer das mãos para cumprimentá-las com o chapéu. A briga com sorvetes tem o seu valor. O riso, aí, não decorre apenas do esforço físico dos atores. Afinal, não se trata meramente de esfregar as cremosas iguarias nos rostos um do outro, mas da leveza dos movimentos, orquestrados como suave bailado. Não deixa de ser genial a gag dos piolhos que Carlitos contrai de seu oponente. A praga não é vista, evidentemente. Mas sobra para o espectador a piada visual decorrente dos trejeitos do personagem tomado de coceiras provocadas pelos bichinhos. E não se pode esquecer o temor revestido de antipatia que tanto Chaplin como seu personagem sentiam pelas representações fardadas da autoridade. Vingam-se delas, reduzindo-as ao ridículo das situações mais humilhantes.


O vagabundo (Charles Chaplin) e seu oponente (Billy Armstrong) na sorveteria.

O vagabundo (Charles Chaplin) faz a corte para a personagem vivida por Edna Purviance


Formalmente, o filme apresenta progressos. Carlitos não entra em cena bruscamente, surgindo de um dos cantos do quadro. Avança em direção à câmera, descendo uma rua. O personagem faz um movimento obliquo à objetiva, contra o simples e tão comum recurso do paralelismo. A maneira de filmar também se desvencilha, em alguns momentos, da fixidez dos planos de média distância, que revelam os personagens quase sempre de corpo inteiro. Há alguns primeiros planos e aproximações de close-ups.


O vagabundo e galanteador (Charles Chaplin) acuado ao final de Carlitos na praia. À esquerda, Edna Purviance e Bud Jamison; à direita, Billy Armstrong e Margie Reiger


Por fim, é sempre digno de nota ver o que Chaplin conseguia extrair de parcos adereços e da maleabilidade corporal peculiar a ele e aos companheiros de cena. Pouco se exige de Edna Purviance, que será de suma importância em realizações vindouras da chapliniana. Mas Billy Armstrong e Bud Jamison em tudo colaboram, principalmente o primeiro. Há também a rápida aparição do magricela e estupendo Ben Turpin no papel de um louco.


Imagem de 1915: Charles Chaplin com o cast da Essanay


Roteiro: Charles Chaplin (não creditado). Direção de fotografia (preto e branco): Harry Ensign (não creditado). Montagem: Charles Chaplin (não creditado). Assistente de direção: Ernest Van Pelt (não creditado). Tempo de exibição: 14 minutos.


(José Eugenio Guimarães, 1994)



[1] No Brasil, também conhecido como Uma noite fora.
[2] Também conhecido como Carlitos é um bicho no muque, no Brasil.
[3] Batizado também como Carlitos impostor, no Brasil.

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