domingo, 9 de junho de 2013

REDUCIONISMO, MANIQUEÍSMO, SIMPLISMO, FABULAÇÃO E DIALÉTICA: A UNE VAI AO CINEMA PASSANDO PELAS FAVELAS

1962: a União Nacional dos Estudantes (UNE) completa 25 anos. Intermediada pelo seu Centro Popular de Cultura (CPC), resolve investir em cinema. Disso resulta o desigual e episódico Cinco vezes favela, a cargo dos iniciantes Miguel Borges, Joaquim Pedro de Andrade, Carlos Diegues, Marcos Farias e Leon Hirszman. É uma realização mítica, mais comentada e citada que propriamente vista. Inserida nas propostas do Cinema Novo e francamente militante, problematiza as possibilidades do povo brasileiro como sujeito revolucionário. Nos marcos dessa orientação é, dentre as realizações do movimento, a que mais direta e visceralmente avançou, apesar das muitas críticas negativas que recebeu. 








Cinco vezes favela

Direção:
Miguel Borges (Zé da Cachorra), Joaquim Pedro de Andrade (Couro de gato), Carlos Diegues (Escola de samba, alegria de viver), Marcos Farias (Um favelado), Leon Hirszman (Pedreira de São Diogo)
Produção:
Marcos Farias, Leon Hirszman, Paulo Cesar Saraceni
Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes (CPC-UNE), Instituto Nacional do Livro, Saga Filmes, Tabajara Filmes
Brasil — 1962
Elenco:
Flávio Migliaccio, Isabella, Alex Viany, Waldir Fiori, Maria Lúcia Lessa, Álvaro Costa e Silva, Carlos Estevam, Armando Costa, Manoel do Amaral, José Henrique Montes, Lurdinha Machado, Cosme dos Santos e Paulo César Barroso em Um favelado; Waldyr Onofre, Labanca, Peggy Aubry, Cláudio Bueno Rocha, Jandira Aguiar, Vicente Severino Silva, Vera Santana, Marina Carvalho, Paulo Henrique, Ubirajara Ramos, Paulo Gomes, José Gonçalves, José Saenz e Cândido das Neves em Zé da Cachorra; Francisco de Assis, Riva Nimitz, Henrique César, Napoleão Muniz Freire, Cláudio Correia e Castro, Milton Gonçalves, Paulo Sérgio de Lima, Sebastião, Aylton e Damião em Couro de gato; Oduvaldo Viana Filho, Maria da Graça, Abdias do Nascimento, Jorge Coutinho, Creston Portilho, Carlos Diegues e componentes da Escola de Samba Unidos do Cabuçu em Escola de samba, alegria de viver; Francisco de Assis, Glauce Rocha, Sadi Cabral, Joel Barcellos, Cecil Thiré, José Zózimo, Audrey Salvador, Haroldo de Oliveira, Jair Bernardo, Procópio Mariano, Joaquim Santana Filho, Adolfo de Souza, Oswaldo e Frazão em Pedreira de São Diogo.




O diretores, a partir da esquerda - ao alto: Marcos Farias, Miguel Borges e Carlos Diegues; abaixo: Joaquim Pedro de Andrade e Leon Hirszman


Em 1962 a União Nacional dos Estudantes completava 25 anos. Apoiada em seu efervescente Centro Popular de Cultura (CPC), resolveu investir em cinema. O resultado foi Cinco vezes favela[1], único filme que produziu. No período, nascia no Brasil uma maneira mais livre de filmar. Nelson Pereira dos Santos, Roberto Santos, Roberto Pires e Glauber Rocha mostravam a possibilidade de agir à margem dos esquemas comerciais consolidados pelos estúdios da Atlântida e da Herbert Richers, responsáveis, principalmente o primeiro, pelas comédias de inspiração popular e carnavalesca, pejorativamente conhecidas como chanchadas. Também passaram ao largo de propostas como a da Companhia Cinematográfica Vera Cruz, fracassadas nas tentativas de implantar um regime de produção em escala industrial, capaz de gerar o chamado “cinema de qualidade”, inspirado nas matrizes europeias e hollywoodianas.


Nelson Pereira dos Santos aprende a fazer cinema sob influência das limitações técnicas e estéticas do Neorrealismo Italiano. Em Rio 40 graus (1955) e Rio Zona Norte (1957), aponta a câmera para o cotidiano das ruas e morros do Rio de Janeiro. Encena sob luz natural — sempre que possível — dramas centrados nos modos de vida da gente obrigada às agruras do trabalho pouco compensador, às precárias condições de transporte, à falta de esperança e aos expedientes de ocasião dos condenados a sobreviver nos limites da marginalidade. Roberto Santos vai às mesmas fontes neorrealistas e logra O Grande momento (1958), abordagem dos sonhos estreitamente demarcados de um jovem operário que, próximo do casamento, sabe que continuará prisioneiro de uma existência sem brechas às inspirações da ilusão. Pela mesma seara avança Roberto Pires em A grande feira (1961) — exposição dos percalços de feirantes ameaçados de perder, por pressão da especulação imobiliária, o costumeiro ponto à comercialização de seus produtos — e Tocaia no asfalto (1962), denúncia das relações promíscuas entre política e criminalidade. Glauber Rocha, inspirado no cinema revolucionário russo, principalmente na dialética eisensteiniana, descreve e analisa o cotidiano imutável de uma comunidade de pescadores pobres em Barravento (1961).


O país vive do começo dos anos 60 ao fim das ilusões decretado pelo golpe de Estado de 1964, situação de franco otimismo. Manifestações artísticas — musicais, teatrais, literárias e cinematográficas — se entrelaçam com a política. As discussões sobre os caminhos da revolução brasileira estão na ordem do dia. O povo, sempre observado como abstração distante, tem o rosto estampado de forma mais realista e próxima nas obras dos realizadores referidos. Diante da possibilidade de revolução, passa a ser concebido como sujeito coletivo ou agente revolucionário, depositário de esperanças capazes de alavancar a transformação estrutural do país. Mas, qual é o caráter desse povo? Quais suas limitações? Como moldá-lo em protagonista de um momento histórico que se anuncia? Francamente militante, Cinco vezes favela é, provavelmente, o filme do cinema novo que mais direta e visceralmente avançou na tentativa de lançar luz sobre essas questões.


Cinco vezes favela, pela sua própria organização, não poderia resultar numa obra homogênea, solidamente coerente. Sua tônica é a desigualdade. É uma junção de episódios autônomos. Cinco realizadores em início de carreira[2], apoiados em diferentes orientações cinematográficas, apresentam cinco visões sobre o cotidiano da população marginalizada, moradora dos morros do Rio de Janeiro. As favelas do Cantagalo, Pavão, Cabuçu, Borel e Morro da Favela oferecem os panos de fundo à composição dos dramas encenados por Marcos Farias, Miguel Borges, Joaquim Pedro de Andrade, Carlos Diegues e Leon Hirszman.


O filme não chegou a ter lançamento nacional. Pelo que se sabe, teve exibição limitada ao Rio de Janeiro. Mesmo assim, provocou debates que, em geral, punham em xeque as visões dos realizadores e do próprio CPC, prisioneiras do reducionismo e do maniqueísmo simplista na focalização dos problemas que afligiam os setores mais marginalizados da população. Além do mais, segundo o ponto de vista que animava o projeto, o povo no qual se depositavam as esperanças revolucionárias não possuía, paradoxalmente, a menor possibilidade de se fazer sujeito autônomo de sua própria emancipação. Prisioneiro da passividade e do fatalismo, moldado pelo atavismo gerado nas malhas de um passado construído pela escravidão e pela dependência ao latifúndio, esse povo só poderia contar com uma consciência emancipadora que lhe fosse externa. Esta seria possibilitada por uma intelectualidade orgânica responsável por criticar e depurar os fundamentos da cultura popular, apontados por organizações qual o CPC como responsáveis pelo imobilismo e alienação das massas. Então, longe de ser sujeito, o povo era percebido como objeto pronto a ser rebocado por uma vontade organizadora e suficientemente iluminada para denunciar problemas e apontar didaticamente as soluções.


Marcos Farias, Miguel Borges, Carlos Diegues, Leon Hirszman e Joaquim Pedro de Andrade estavam, em diferentes graus, influenciados pelas intencionalidades do CPC. O cinema que faziam cumpria, em linhas gerais, função instrumental. Era meio de denúncia e conscientização. Preocupações estético-formais e a própria linguagem cinematográfica não eram percebidas como centrais. Importavam o fazer e, principalmente, a vontade de fazer. O como fazer não passava de questão secundária, praticamente irrelevante. Resultará dessa opção o rompimento do CPC, tão vinculado ao imediatismo, com o núcleo basilar do cinema novo.


Para piorar, a proposta messiânica a ser cumprida pela intelectualidade na conscientização e politização do povo — sempre percebido como um todo homogêneo — trazia um problema maior, revelador do dirigismo autossuficiente do CPC — sem esquecer o autoritarismo e o paternalismo — e dos realizadores dos episódios de Cinco vezes favela. Uma estrutura social injusta era responsável pelas precárias condições de vida e pela alienação de vastos setores populares. Então, haveria que se fazer a análise crítica dessa realidade, condição primordial à sua transformação. Porém, como aponta Jean-Claude Bernadet, os representantes do CPC, de modo geral, e os cineastas, em particular, empiricamente pouco sabiam sobre as reais condições da realidade que pretendiam transformar. Não viviam nos morros. Possuíam percepções vagas sobre as favelas. Apoiavam-se em idéias preconcebidas, destituídas de qualquer base concreta[3]. Resultado disso é o simplismo na focalização e abordagem dos problemas: “O ladrão da favela não é ladrão porque não queira trabalhar, mas porque não encontra serviço e precisa comer; é a sociedade que faz o ladrão (...). Se o favelado não tem onde dormir é porque até os barracos da favela pertencem a um rico proprietário que dispõe de seus bens a seu bel prazer (...). Se o favelado preocupa-se mais em organizar as festas da escola de samba que em participar da vida sindical para alterar a sociedade, tudo ficará na mesma (...)”[4].


Cinco vezes favela apresenta, nesta sequência, os episódios Um favelado, Zé da Cachorra, Couro de gato, Escola de samba, alegria de viver e Pedreira de São Diogo. Percebe-se, em todos, a pontuação dramática de temas carnavalescos.


Em Um favelado, o desempregado João (Migliaccio) não tem como pagar o aluguel do barraco no qual mora com a mulher (Isabella) e o filho. Por isso, é violentamente agredido, como “aperitivo”, a mando do proprietário, advogado que vive da exploração da miséria alheia. Deverá pagar o quanto antes, ou esperar o pior.



Joao (Flávio Migliaccio) protagoniza o episódio Um favelado

A atuação de Flavio Migliaccio é um dos trunfos do episódio. Ele oferece, com seu semblante, um retrato sentido da desilusão, de uma vida destituída de senso de direção. A fotografia de Özen Sermet também merece destaque. Com suas lentes, carrega de desolação o ambiente da favela, ressaltando a crueza de uma paisagem que parece impregnada de coloração rural. As cenas obtidas no depósito de lixo, onde crianças largadas à própria sorte brincam e se servem diretamente dos restos de alimentos encontrados, são fortes e atuais.


João procura emprego na construção civil. Tenta levantar dinheiro emprestado com amigos. Nada consegue. Sem saída, alia-se a Pernambuco, bandido do morro. Sem jeito para o crime, é abandonado pelos comparsas e perseguido por populares após assalto a um ônibus. Fere-se seriamente durante a fuga. É apanhado, surrado e preso.


Nos planos formais e narrativos, Um favelado demonstra boa concepção. Nitidamente influenciado pelo Neorrealismo Italiano, poderia estar entre os melhores episódios de Cinco vezes favela.



João (Flávio Migliaccio), tomado pela desesperança, tenta encontrar trabalho

Mas Marcos Farias derrapa feio, no pior dos esquematismos, ao fazer a apresentação de Pernambuco. Ele não passa de um ladrão pé de chinelo. Porém, tem situação melhor que a de João. Se este não tem forças, dada a sua condição, de corresponder ao amor da esposa, Pernambuco tem uma mulher oferecida e exibida, sempre à disposição, contorcendo-se para a câmera no que há de pior em poses que se pretendem sensuais. O meliante é mostrado como se fosse um burguês, vivendo do bom e do melhor; um bandido burguês, segundo o retrato terrivelmente pobre e simplista que o CPC oferecia da burguesia.


Zé da Cachorra não tem boa realização. A simplificação excessiva e o esquematismo empobrecedor, que esvaziam a realidade de toda a sua complexidade, apresentam-se acintosamente gritantes.


Raimundo (Saenz) é um pobre coitado acompanhado de mulher e quatro filhos. Despejados, vagueiam à procura de teto. Chegam à favela controlada por um grileiro (Labanca). Este aguarda a valorização dos lotes para lucrar com a especulação imobiliária. O único barraco disponível pertence a ele. Os moradores tentam convencer Raimundo a dar meia volta. Mas graças ao poder de persuasão de Zé da Cachorra (Onofre), Raimundo e família se instalam no barraco do grileiro.



Waldir Onofre como Zé da Cachorra 

Informado da situação, o grileiro apela para Ferreira, candidato político que apadrinha, na tentativa de remover pacificamente os novos moradores. Suas intenções são barradas por Zé da Cachorra. Forma-se uma comissão de favelados para resolver a situação. Raimundo, convidado a tomar parte do grupo, prefere se omitir, revelando toda a sua passividade. As negociações são infrutíferas. Raimundo tem duas semanas para desocupar o barraco. Zé da Cachorra tenta organizar resistência ao ultimato. Mas se irrita com conformismo do companheiro. Termina por expulsá-lo da favela.


Os problemas observados em Um favelado são mais gritantes em Zé da Cachorra. A concepção do núcleo burguês é vergonhosamente falsa. Para ampliar a diferença social entre a vida mansa do grileiro e a pobreza dos favelados, o personagem vivido por Labanca é mostrado em meio a orgias sem fim, ao lado de mulheres seminuas em poses falsamente provocantes. São cenas terrivelmente primárias e constrangedoras.



Labanca como o especulador imobiliário e empresário proprietário de barracos da favela, sempre na vida boa

O personagem Zé da Cachorra foi percebido, quando do lançamento de Cinco vezes favela, como uma liderança revolucionária. A respeito, expressou-se Glauber Rocha: “Miguel Borges faz de seu personagem um absoluto herói politizado que conduz os habitantes da favela a reagir enérgica (e revolucionariamente) à exploração de um grileiro.”[5] Hoje, passados 51 anos da realização de Cinco vezes favela, essa visão parece equivocada. Zé da Cachorra se assemelha mais a uma chefia despótica, representação da opressão local, igual a tantas instaladas nos morros cariocas do final dos anos setenta para cá.



"Quando o carnaval se aproxima, os tamborins não têm preço"

Couro de gato é, sem dúvida, um dos mais maduros episódios, inclusive em termos cinematográficos. Sua origem, aliás, antecede à realização de Cinco vezes favela. Sequer foi produzido pelo CPC. Provavelmente, dada a sua qualidade, foi integrado aos demais segmentos como pretexto de conferir maior visibilidade ao projeto como um todo e à realização de Joaquim Pedro de Andrade em particular. Couro de gato vinha de vitoriosa carreira internacional. Conquistara Menção Honrosa no Festival de Obberhausen, na República Federal da Alemanha, em 1962. No mesmo ano foi agraciado no Festival de Sestri-Levante, Itália. No Brasil, levantou o Prêmio de Qualidade da Comissão de Auxílio à Indústria Cinematográfica (CAIC) do Rio de Janeiro.


Couro de gato é concebido como fábula. Vale-se quase que exclusivamente das imagens e da boa utilização da composição Quem quiser encontrar o amor, de Carlos Lyra e Geraldo Vandré. Os diálogos praticamente inexistem. Logo no começo um locutor antecipa uma das mais ágeis narrativas do cinema brasileiro: “Quando o carnaval se aproxima os tamborins não têm preço!” Então, ai dos bichanos! São caçados sem trégua pelos garotos das favelas, não importa onde, e vendidos por razoável quantia aos fabricantes dos instrumentos.


O episódio centra o foco na afeição de um garoto pelo gato que afanou de uma grã-fina (Riva Nimitz). Porém, tomado pelo realismo, ciente do pouco que tem para comer e tendo ainda que alimentar o bichano, deixa para trás o sentimentalismo e passa o mascote de poucas horas ao fabricante de tamborins. Além de ser bem sucedido no plano da fábula, Couro de gato é feliz na maneira como expõe a separação entre os mundos da favela e do asfalto. A polícia e os donos dos gatos encerram a perseguição aos pequenos ladrões tão logo chegam ao pé do morro. Deparam-se com o favelado vivido por Milton Gonçalves. Ficam apenas a se encarar, numa relação de ameaça e estranhamento.


Couro de gato: Apesar do afeto ao bichano, o pragmatismo da sobrevivência falará mais alto

Escola de samba, alegria de viver, é claudicante, frouxo na amarração. Revela um Carlos Diegues totalmente inseguro. O próprio diretor aparece em cena, no papel de um atravessador de materiais para desfiles de carnaval. Oduvaldo Viana Filho interpreta uma jovem liderança da escola de samba do morro. Consegue dar fim ao poder despótico, personificado por Abdias do Nascimento, sobre a agremiação. Infelizmente, para o personagem de Viana Filho, tudo é carnaval. Dalva (Maria da Graça), com quem vive, demonstra mais maturidade política, militando cotidianamente na atividade sindical. Cansada da alienação do companheiro, encerra a relação. Ele, pensando sempre na agremiação evoluindo na avenida, contrai, irresponsavelmente, dívidas com fornecedores que o ameaçam para receber o pagamento.



Dalva (Maria da Graça) e a chefia despótica do samba interpretada por Abdias do Nascimento: Escola de samba, alegria de Viver

Diegues, provavelmente por falta de clareza na organização do material, parece prisioneiro da esquizofrenia narrativa. Ao mesmo tempo em que denuncia a alienação provocada pelo apego ao carnaval, não deixa de oferecer planos que tendem a exaltar a capacidade de aglutinação de uma agremiação do samba. Dá a sensação de entrar em choque com as próprias intenções do CPC e com o título do episódio, carregado de ironia no “alegria de viver”. O final, confuso, mostra um integrante da escola livrando-se dos trajes carnavalescos e correndo morro acima, ao encontro de Dalva. Não se sabe se está mais interessado na consciência política que ela representa ou se busca simplesmente uma relação descompromissada com a garota, agora desimpedida. Segundo a proposta de Cinco vezes favela, a primeira opção é a mais crível. Mas Carlos Diegues passa a impressão de falhar no didatismo pretendido pelo CPC.



Oduvaldo Viana Filho e Jorge Coutinho: Escola de samba, alegria de viver

Em meio à desigualdade de Cinco vezes favela, os episódios Pedreira de São Diogo e Couro de gato são nitidamente superiores aos demais. Difícil saber qual é o melhor no plano cinematográfico, pois são embalados por diferentes visões de realização, mas levados a termo com apuro. Para os propósitos do CPC, Pedreira de São Diogo é mais maduro politicamente. O esquematismo, a oposição maniqueísta e simplória entre explorador-explorado e a percepção dos setores populares como meros depositários da alienação não marcam presença na realização de Leon Hirszman. Ela exala otimismo, apesar da desolação do cenário e da miséria dos personagens.



Juntos, operários da pedreira e moradores da favela avaliam a situação: Pedreira de São Diogo

Uma favela corre o risco de ser varrida do mapa. Está instalada sobre uma pedreira, obrigada a ampliar sua margem de lucro. O gerente (Sadi Cabral) ordena aumentar para perigosos 500 Kg a carga de explosivos. Os operários, tão pobres como os favelados, desesperam-se com a tragédia anunciada. Partem para a ação política. Conclamam os favelados à beira da pedreira no momento da explosão, para evitar o desastre. Apesar do operário (Thiré) que toma para si a responsabilidade de escalar a pedreira e alertar os moradores, o episódio não faz a celebração do agente individual e nem se preocupa em buscar, fora do grupo, uma consciência esclarecedora. Trabalhadores da pedreira e favelados se unem, dando sentido ao tão esperado sujeito coletivo dos sonhos revolucionários. Até o samba que comenta o episódio, de autoria de Hélcio Milito, não é percebido, como nos demais segmentos — à exceção de Couro de gato — como parte de uma realidade a denunciar e superar. Está organicamente integrado ao cotidiano dos explorados e faz a celebração da união.


Sadi Cabral e os operários de Pedreira de São Diogo, de Leon Hirszman

Tanto tempo depois de realizado e apesar de seus notórios problemas, Cinco vezes favela mantém a aura de filme mítico. Ainda é mais comentado e citado que propriamente visto. Gerou dois episódios exemplarmente concebidos e permitiu a projeção de três dos mais significativos talentos do cinema brasileiro: Carlos Diegues, ainda em atividade, e os precocemente desaparecidos Joaquim Pedro de Andrade e Leon Hirszman. Marcos Farias e Miguel Borges continuaram na direção de filmes, mas se mantiveram distantes dos destaques conseguidos pelos realizadores de Escola de samba, alegria de viver, Couro de gato e Pedreira de São Diogo.


Marcos Farias faleceu em 1985. Realizou Fogo morto (1976) — produção de Miguel Borges —, competente adaptação do romance homônimo de José Lins do Rego, sobre a decadência do complexo gerado pela monocultura da cana de açúcar no Nordeste. Produziu, em 1972, um dos mais importantes filmes brasileiros: São Bernardo, dirigido por Leon Hirszman a partir da novela de mesmo nome de Graciliano Ramos. Miguel Borges dirigiu, em 1975, o inspirado Pecado na sacristia, baseado nas crendices populares. É filme merecedor de relançamento. De Borges também é O caso Cláudia (1979), tratamento ficcional do rumoroso assassinato da jovem Cláudia Lessin Rodrigues, em 1977, no Rio de Janeiro.


Joaquim Pedro de Andrade se firmou como um dos talentos mais consistentes do cinema nacional. Seu Garrincha, alegria do povo (1963) é, ainda, uma realização exemplar. Também dirigiu os “clássicos de nascença” Macunaíma (1968), Os inconfidentes (1972), Guerra conjugal (1976) e o pouco compreendido O homem do Pau Brasil (1982). Faleceu vitimado pelo câncer, em 1988, um ano após a morte de Leon Hirszman.


Hirzsman realizou A falecida (1965), provavelmente a melhor tradução cinematográfica de uma peça de Nelson Rodrigues. Mas também será lembrado por São Bernardo, maduro e consistente; Eles não usam Black-tie (1981), baseado na peça de Gianfrancesco Guarnieri, sucesso popular e de crítica, premiado com o Leão de Ouro no Festival de Veneza; Imagens do inconsciente (1987), sobre o trabalho de Nise da Silveira (co-autora do roteiro, ao lado de Hirzsman) na ala de terapia ocupacional do Centro Psiquiátrico Pedro II, atual Museu do Inconsciente; e ABC da greve, concluído em 1990 por Adrian Cooper, que refaz a trajetória histórica do amadurecimento político do trabalhador brasileiro a partir das primeiras greves do ABC paulista, ao fim dos anos 70.


Depois da frustrada experiência de Escola de samba, alegria de viver, Carlos Diegues consolidou uma das mais diversificadas e interessantes filmografias do cinema brasileiro. Prosseguiu no aprendizado com Ganga Zumba, rei de Palmares (1963) e se firmou com o belo e emocionante A grande cidade (1966). Ficou no meio termo com o ambicioso painel histórico e político de Os herdeiros (1969). Avançou no alegre musical Quando o carnaval chegar (1972), relato das aventuras de um grupo mambembe pelo país, espécie de antecipação de seu melhor filme, Bye bye Brasil (1979), no qual a Caravana Rolidei, ao percorrer o Norte, Nordeste e Centro-Oeste, revela o fracasso do Brasil Grande das ambições dos governos militares. Joanna francesa (1973) capta o Nordeste da cana-de-açúcar na transição do engenho para a usina, expondo uma geografia física e humana tomada pela inanição. Xica da Silva (1976) busca um cinema de comunicação popular. É uma alegoria armada sob pano de fundo histórico, espécie de saudação aos esforços do subjugado e diversificado povo brasileiro na luta para sobreviver e se afirmar. O tocante Chuvas de verão (1977) aproxima as frustrações da velhice com a falta de perspectiva da vida nos subúrbios. Diegues prossegue pelo polêmico Quilombo (1983), no qual retoma e amplia o que iniciara em Ganga Zumba, rei de Palmares, agora em regime de superprodução. Retorna ao tom menor em Um trem para as estrelas (1987), Dias melhores virão (1990) e Veja esta canção (1994). Derrapa em Orfeu (1999) e redescobre a alegria de viver em Tieta do agreste (1996) e Deus é brasileiro (2003).


Qualidades fundamentais em Carlos Diegues são a capacidade de animação e a generosidade. Fornece apoio aos colegas, principalmente aos jovens talentos em início de carreira. Recentemente, em 2010, lançou-se no que pode ser considerada uma jornada de prestação de contas com os equívocos e pretensões de Cinco vezes favela. Patrocinou, produziu e orientou a realização de 5 x favela, agora por nós mesmos. Como antecipa o título, o projeto ficou por conta dos próprios moradores das favelas, organizados em torno da Central Única das Favelas (CUFA) e do grupo Nós do Morro. Aqueles percebidos como objetos na produção do CPC, de 1962, tornam-se, agora, sujeitos de seu próprio olhar nos episódios Fonte de renda, de Manaíra Carneiro e Wawá Novais; Arroz com feijão, de Rodrigo Felha e Cacau Amaral; Concerto para violino, de Luciano Vidigal; Deixa voar, de Cadu Barcelos; e Acende a luz, de Luciana Bezerra. Como ressaltou o crítico Luiz Zanin Oricchio, ao comentar 5 x favela, agora por nós mesmos[6], Carlos Diegues, representando inclusive seus companheiros de geração — unidos pelo CPC —, sente a emergência de novos tempos e atores. Num gesto simbólico, o diretor de Escola de samba, alegria de viver, faz a passagem do bastão a sucessores legítimos dos anseios que acreditava representar no filme de 1962.


Uma frágil favela se ergue sobre a Pedreira de São Diogo, que vai sendo demolida com indiferença à sorte dos moradores


Roteiro: Miguel Borges em Zé da Cachorra; Joaquim Pedro de Andrade e Domingos de Oliveira em Couro de gato; Carlos Diegues e Carlos Estevão em Escola de samba, alegria de viver; Marcos Farias em Um favelado; Leon Hirszman e Flávio Migliaccio em Pedreira de São Diogo. Música: Carlos Lyra em Escola de samba, alegria de viver e Couro de gato; Hélcio Milito em Pedreira de São Diogo; Mário Rocha em Um favelado e Zé da Cachorra; Geraldo Vandré em Couro de Gato. Direção de fotografia (preto-e-branco): Mário Carneiro em Couro de gato; George Dusek em Zé da Cachorra; Özen Sermet em Um favelado, Escola de samba, alegria de viver e Pedreira de São Diogo. Montagem: Jacqueline Aubrey em Couro de gato; Ruy Guerra em Escola de samba, alegria de viver; Saul Lachtermacher em Um favelado e Zé da Cachorra; Nelson Pereira dos Santos em Pedreira de São Diogo. Direção de arte: Flávio Império. Gerentes de produção: Eduardo Coutinho, Ivan De Souza, Fernando Drummond. Assistentes de direção: Celso Luiz Nunes Amorim e Flávio Migliaccio em Pedreira de São Diogo; Domingos de Oliveira em Couro de gato; Henrique Meyer em Zé da Cachorra. Som: Sérgio Montagna. Assistentes de Câmera: Fernando Duarte em Pedreira de São Diogo; Paulo Cesar Saraceni em Couro de gato. Assistente de produção: Lídio Francisco da Costa e Ezequiel do Nascimento em Pedreira de São Diogo; Fernando Drummond em Couro de gato. Continuidade: Luiz Paulo Pretti em Pedreira de São Diogo. Letreiros: José Henrique Bello. Tempo de exibição: 92 minutos.


(José Eugenio Guimarães, 2013)

[1] Cabra marcado para morrer, de Eduardo Coutinho, seria o segundo título bancado pelo CPC. Teve a realização truncada pelo golpe de Estado de 1964. O argumento abordava as atividades de João Pedro Teixeira, líder das Ligas Camponesas no sertão paraibano, assassinado em 1962. Em 1984, depois de encontrar parte dos negativos, Eduardo Coutinho finalizou as filmagens, alterando totalmente o enfoque pretendido: passou a reconstituir a trajetória de pessoas envolvidas na realização — principalmente os familiares de João Pedro Teixeira —, algumas desaparecidas desde a implantação do regime militar.
[2] Carlos Diegues vinha da realização dos curtas Fuga (1960) e Domingo (1961). Joaquim Pedro de Andrade fizera, em 1959, dois filmes também curtos, os documentários O poeta do castelo e O mestre de Apicucos, abordando, respectivamente, Manuel Bandeira e Gilberto Freyre. Marcos Farias, Miguel Borges e Leon Hirszman não tinham experiência na realização cinematográfica.
[3] Cf. BERNADET, Jean-Claude. Brasil em tempo cinema: ensaios sobre o cinema brasileiro. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976. p. 30-32.
[4] Ibidem. p. 30.
[5] ROCHA, Glauber. Revisão crítica do cinema brasileiro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1963. p. 114.
[6] ORICCHIO, Luiz Zanin. Cinco vezes favela agora por nós mesmos. Disponível em http://blogs.estadao.com.br/luiz-zanin/cinco-vezes-favela-agora-por-nos-mesmos. Acessado em 20 jan. 2013.