domingo, 30 de junho de 2013

ITÁLIA, 1924: FASCISMO EM ALTA — MATTEOTTI É ASSASSINADO; MUSSOLINI TOMA O PODER

O delito Matteotti (Il delitto Matteotti, 1973) honra a tradição do vigoroso cinema político da Itália ao longo dos anos 60 e 70. O diretor Florestano Vancini radiografa a tensão e perplexidade que tomaram conta do país após o sequestro e assassinato do deputado socialista Giacomo Matteotti pelos fascistas. Diante deste fato e de seus desdobramentos, pergunta: Como Musollini subiu ao poder? Que métodos utilizou? Quais as respostas da sociedade e dos partidos? A realização se vale da linguagem semidocumental e do ritmo envolvente do cinejornalismo para fazer o julgamento moral e político do fascismo. A apreciação a seguir é de 1977. Passou por revisão e ampliação em 1989.









O delito Matteotti
Il delitto Matteotti

Direção:
Florestano Vancini
Produção:
Gino Mordini
Claudia Cinematografica, Dobermann Films
Itália — 1973
Elenco:
Franco Nero, Vittorio De Sica, Mario Adorf, Riccardo Cucciola, Gastone Moschin, Damiano Damiani, Umberto Orsini, Giulio Girola, Manuela Kustermann, Renzo Montagnini, Stefano Oppedisano, Maurizio Arene, Andrea Aureli, Cesare Barbetti, Pietro Bondi, Giovanni Brusadori, Manlio Busoni, Andrea Costa, Mico Cundari, Francesco D’Adda, Aldo De Carellis, Giorgio Dolfin, Max Dorian, Giorgio Favretto, Pietro Gerlini, Antonio La Raine, Carlo Lopresti, Mario Maffei, Giovanna Mainardi, Michele Malaspina, Ezio Marano, Roberto Marelli, Renzo Martini, Franco Mazzieri, Renato Montalbano, Franco Moraldi, José Quaglio, Valerio Ruggeli, Gino Santercole, Roberto Santi, Franco Silva, Gianni Solaro, Gioacchino Soko, Orazio Stracuzzi, Pietro Tordi, Tullio Valli, Loris Zanchi.


O diretor Florestano Vancini


Em junho de 1924, durante sessão de instalação do novo parlamento italiano, o deputado ao Partido Socialista Giacomo Matteotti (Nero) faz de improviso vigoroso discurso que ganha imediata e ampla repercussão. Sob vaias e xingamentos da maioria fascista, denuncia o terror e a violência impostos pelas brigadas de Benito Mussolini (Adorf), questiona a lisura das eleições e pede a dissolução do parlamento em nome da moralidade pública. Cumprimentado pelos correligionários e aliados ao fim da sessão, Matteotti diz em tom de desabafo: “Prepare meu enterro”. A fala, provavelmente, passa despercebida ao espectador alheio ao tema da ascensão do fascismo ao poder. Mas assume caráter premonitório ao conhecedor da recente história italiana. No dia seguinte ao pronunciamento, um grupo fascista, agindo com conivência de Mussolini e comandado por Amerigo Dumini (Orsini), sequestra Matteotti  na rua, à luz do dia  e o espanca até a morte. O corpo desaparece.


Franco Nero interpreta Giacomo Matteotti

Imagem do verdadeiro Giacomo Matteotti

À direita, em traje militar, Giulio Girola como o Rei Victor Emanuel III


O delito Matteotti se inscreve na boa tradição do cinema político italiano de tantas e importantes realizações como Sacco e Vanzetti (Sacco e Vanzetti, 1970), de Giuliano Montaldo; A classe operária vai ao paraíso (La classe operaria va in paradiso, 1972) e Investigação sobre um cidadão acima de qualquer suspeita (Indagine su un cittadino al di sopra di ogni sospetta, 1970), de Elio Petri; Os companheiros (I compagni, 1963), de Mario Monicelli; O bandido Giuliano (Salvatore Giuliano, 1962), Cadáveres ilustres (Cadaveri eccelenti, 1976) e O caso Mattei (Il caso Mattei, 1971), de Francesco Rosi. O didatismo e a objetividade da narração, aliados à linguagem documental, aproximam a realização de Vancini dos filmes de Rosi, particularmente de O caso Mattei. Apesar de não possuir o rigor e vigor desse título, O delito Matteotti tem suficiente força para confirmar o talento de um cineasta de luz própria, que não nega a experiência acumulada no jornalismo e em cerca de 40 documentários curtos[1] realizados nos anos 50.


Vancini fez assistência de direção para Mario Soldati (A mulher do rio/La donna del fiume, 1955) e Valerio Zurlini (Verão violento/Estate violenta, 1959)[2] antes de se lançar na realização de longas e fazer furor com A noite do massacre (La lunga notte del 43, 1960). A partir daí construiu uma carreira que os críticos consideram irregular, apesar de consistente. Quando a necessidade obrigou, ocultou-se sob o pseudônimo de Stan Vance[3] para fazer Os longos dias de vingança (I lunghi giorni della vendetta, 1965), um spaghetti western. De sua filmografia chegaram aos cinemas do Brasil Vidas ardentes (La calda vita, 1963), Enquanto durou o nosso amor (La stagioni del nostro amore, 1966), O sádico de alma negra (L’isola, 1968), Violência: o quinto poder (La violenza: quinto potere, 1971), além de A noite do massacre, Os longos dias de vingança e O delito Matteotti. Depois deste filme, nenhuma outra realização de Vancini deu entrada no cada vez mais restrito mercado exibidor brasileiro.



Mario Adorf no papel de  Benito Mussolini


O desaparecimento de Matteotti mobiliza a imprensa e a oposição. As autoridades, apesar de pressionadas, protelam as investigações. Populares que testemunharam o sequestro são desacreditados e ameaçados. O local do sequestro se transforma em ponto de peregrinação. O tempo passa; nenhum sinal do deputado. Toma forma a certeza do assassinato político. O clamor da opinião pública deixa os fascistas em xeque. Nessa situação, Mussolini substitui auxiliares na cúpula do poder, diretamente envolvidos no delito, e ordena a exposição de Dumini como boi-de-piranha. O juiz independente Mauro Del Giudice (De Sica), auxiliado pelo colega Umberto Tancredi (Montagnini), faz avançar as investigações, apesar de sofrer várias pressões. Os socialistas representados por Filippo Turatti (Moschin) e Giovanni Amendola (Damiani) entram em acordo com o Partido Popular (católico)  futuro Partido Democrata Cristão, de Dom Luigi Sturzo  e propõem a abstenção das atividades legislativas como forma de pressionar o parlamento e isolar os fascistas. Apelam inutilmente ao Rei Vittorio Emanuel III (Girola), um impotente cada vez mais dependente do Duce. Em geral, costuram acordos de cúpula, alheios à sociedade civil. O Partido Comunista, fundado em 1922 e liderado por Antonio Gramsci (Cucciola), denuncia o isolacionismo das agremiações e propõe aliança com trabalhadores e sindicatos não atrelados ao fascismo como forma de organizar grupos permanentes de pressão.



Riccardo Cucciola interpreta Antonio Gramsci

Benito Mussolini (Mario Adorf) e Victor Emanuel III (Giulio Girola)


Secretamente, Mussolini aproveita o momento de perplexidade e diminuição da atividade parlamentar. Apoiado pelo Rei, consegue mais poder e prepara um golpe de Estado que culminará com o fechamento da Câmara, a prisão e o banimento de líderes oposicionistas. Dois meses depois do desaparecimento o corpo de Matteotti é encontrado. Mas o Senado, conivente com as orientações do Duce, assume o comando das investigações, anulando Del Giudice e Tancredi. A sociedade, deixada à margem pelos partidos, recolhe-se ao imobilismo — como previra Gramsci —, deixando o cenário livre às investidas mais ousadas e violentas das brigadas fascistas. Bancas de jornais são incendiadas, o jornalista e poeta liberal Piero Gobetti (Oppedisano) é espancado diante de populares que assistem a tudo sem reagir.


O delito Matteotti radiografa o tenso ambiente político italiano entre julho de 1924 a janeiro do ano seguinte. Apesar do título, Vancini não está particularmente interessado no desaparecimento e assassinato do deputado socialista. Esse fato, ao diretor, serve de pretexto ao desenvolvimento de um projeto de maior amplitude, que parte da tentativa de oferecer resposta aos seguintes problemas: como Mussolini obteve o total domínio do poder? Que métodos utilizou? Quais as respostas da sociedade e dos partidos? Vancini realizou um filme-tese, uma obra engajada, que se propõe a um julgamento moral e político do fascismo. A exposição dos fatos termina com o levantamento cronológico indicativo dos destinos dos personagens envolvidos no drama: Turatti cai na clandestinidade em 1926 e falece em Paris seis anos depois; Gobetti morre em 1926 em consequência de agressões sofridas; Gramsci falece em 1937, aos 46 anos, condenado a 20 de prisão. Dom Luigi Sturzo parte para o exílio londrino em 1924, só retornando em 1946 para fundar o Partido Democrata Cristão. Emboscado e espancado pelos fascistas em 1926, Giovanni Amendola sucumbe em Paris. Com o afastamento de Del Giudice e Tancredi, os assassinos de Matteotti são julgados por juízes coniventes com o fascismo e libertados.



Piero Gobetti (Stefano Oppedisano) depois de espancado em público pelos fascistas

Vittorio De Sica no papel do advogado Mauro Del Giudice


Vancini adota a linguagem semidocumental e o ritmo envolvente do cine-jornalismo para construir O delito Matteotti. A câmera flagra os objetos e os rostos dos personagens, filmados quase sempre à altura dos olhos. A rápida exposição dos assuntos tem pontuação musical à altura, condizente com a tensa fluidez das imagens. Detalhes e marcações são destacados pela frequente recorrência ao uso do fotograma fixo. O relato é parcial. Vancini não deixa dúvidas quanto às suas preferências e simpatias. Mas evita o simplismo maniqueísta. Se a câmera trata Gramsci com carinho, recusa, por outro lado, o fácil e surrado recurso de reduzir Mussolini a um bufão de fancaria, que carrega nos gestos, poses e expressões. Muito ao contrário: apesar da brutalidade dos seus métodos, Mussolini é retratado como o sagaz arquiteto de um bem pensado projeto de tomada do poder, que soube interpretar os sinais emitidos pela sociedade italiana e se mover num cipoal de contradições que, naquele preciso momento histórico, foram-lhe favoráveis. Se posteriormente ele não revelou igual virtu nem idêntica capacidade de controle da Fortuna, isso é outra história.


O diretor de cinema Damiano Damiani interpreta Giovanni Amendola


O delito Matteotti é, acima de tudo, um filme de diálogos, proeza difícil de ser lograda a contento quando há vários personagens importantes em cena. Mas as falas são objetivas. Os personagens se expressam sem firulas e, assim, revelam-se inteiros ao espectador. Por isso as filmagens optaram pelo recurso do primeiro plano. A tela está quase sempre tomada pelo rosto de quem fala, por sua vez posicionado diante de um fundo invariavelmente desfocado. É uma forma de direcionar a atenção do espectador para o discurso e para quem o pronuncia. É dessa forma que Matteotti é apresentando. Assim também vemos Del Giudice, Gramsci e Mussolini. São personagens sobriamente bem traçados, sob a responsabilidade de um elenco de primeiríssima qualidade, com destaques para Mario Adorf, Ricardo Cucciola e Vittorio De Sica. Franco Nero, tão acostumado à rudeza e laconismo dos spaghetti westerns, passa confiança e sinceridade. Está surpreendentemente bem como Matteotti.






Roteiro e argumento: Lucio M. Battistrada, Florestano Vancini. Fotografia (Eastmancolor): Dario Di Palma. Cenografia: Umberto Turco. Figurinos: Silvana Pantani. Supervisão de trucagens: Rino Carboni. Montagem: Nino Baragli. Música: Egisto Macchi. Operador de câmera: Blasco Giurato. Chefe de trucagens: Manlio Rocchetti. Penteados: Renata Magnanti. Diretor colaborador: Mario Maffei. Ajudante de câmera: Franco Longo. Inspetor de produção: Sergio Bollino. Secretário de produção: Giuliano Giurgola. Direção de produção: Marcello Papaleo. Assistentes de câmera: Giovanni Martelli, Silvano Tessicine. Fotografia de cena: Roberto Nicosia Vinci. Ajudante de figurinos: Andretta Ferrero. Ajudante de trucagens: Feliziano Ciriaco. Ajudantes de cenografia: Enzo Medoe, Ezio Di Monte, Ely Peirote. Som: Raul Montesanti. Secretário de montagem: Ninni Ricinato. Inspetor de produção: Ruggero Cappelli. Assistente de montagem: Rossana Maiori. Sincronização: Fono-Roma. Mixagem: Venanzio Biragli. Efeitos sonoros: Studio Marinelli. Tempo de exibição: 118 minutos.


(José Eugenio Guimarães, 1977; revisto e ampliado em 1989)



[1] Cf. EWALD FILHO, Rubens. Dicionário de cineastas. 2. ed. Porto Alegre: L&PM, 1988. p. 526-527.
[2] Ibidem.
[3] Ibidem.