domingo, 31 de agosto de 2014

CAMILLE BLISS LANÇA TRUFFAUT NO BURLESCO E NA INCOMPREENSÃO

O mórbido e sombrio O quarto verde (La chambre verte, 1978) — ver neste blog A REALIZAÇÃO MAIS MÓRBIDA E SOMBRIA DE TRUFFAUT É UM LIBELO CONTRA A ‘PRAGA’ DO ESQUECIMENTO — é uma das realizações mais incompreendidas de François Truffaut. De igual destino padece a alegre e descompromissada comédia de 1972, Uma jovem tão bela como eu (Une belle fille comme moi). Adaptada da novela policial Such a gorgeus kid like me (Bitch kitty), de Henry Farrell, acompanha a trajetória da trambiqueira Camille Bliss (Bernadett Lafont) enquanto demole os mitos da neutralidade e objetividade científicas do sociólogo Stanislas Prévine (André Dussolier). Também oferece rara oportunidade — provavelmente única — de se ver Truffaut — um dos cineastas que melhor louvou a paixão — fazendo pilhéria do amor romântico em todas as suas formas. A apreciação a seguir é de 1980.







Uma jovem tão bela como eu
Une belle fille comme moi

Direção:
François Truffaut
Produção:
Marcel Berbert
Les Films du Carrossé, Columbia Pictures Corporation
França — 1972
Elenco:
Bernadette Lafont, André Dussollier, Claude Brasseur, Charles Denner, Guy Marchand, Philippe Léotard, Anne Kreis, Gilberte Géniat, Gaston Ouvrard, Danièle Girard, Michel Delahaye, Martine Ferrière, Annick Fougery, Jacob Weizbluth, Jérôme Zucca e os não creditados Marcel Berbert, Jean-Loup Dabadie, Jean-François Stévenin, François Truffaut.



François Truffaut e Bernadette Lafont nas filmagens de Uma jovem tão bela como eu



Este é o duodécimo longa de François Truffaut. É imediatamente posterior a Duas inglesas e o amor (Les deux anglaises et le continent, 1971) — fracasso de público que só mereceu lançamento comercial entre nós em 1976, após o cineasta emplacar dois sucessos consecutivos: A noite americana (La nuit americaine, 1973)  Oscar de Melhor Filme Estrangeiro  e A história de Adele H (L’histoire de Adele H, 1975). Uma jovem tão bela como eu estreou no Brasil em 1972.


A realização é adaptação — por Truffaut e Jean-Loup Dabadie — da novela policial Such a gorgeus kid like me (Bitch kitty), do estadunidense Henry Farrell. É um dos filmes mais pessoais do diretor. Francamente cômico, não apresenta qualquer ponto de contato com suas realizações anteriores. Por isso, causou profundo estranhamento em redutos mais conservadores do público e da crítica. Esses — viciados na facilidade limitadora de rótulos e fórmulas — resistiram a um produto que não souberam exatamente onde e como classificar. Preferiram simplesmente recusar a novidade e optar pela saída fácil e confortável de acusar o diretor de aderir ao cinema "francamente comercial e americanizado". Tais apreciadores se mostraram tão chapados quanto o sociólogo Stanislas Prévine (Dussolier), prisioneiro da arrogância intelectual e dos mitos das absolutas neutralidade e objetividade científicas. Por isso, perdeu de vista a independência crítica e analítica; sucumbiu fácil à vulgaridade e previsibilidade de Camille Bliss (Lafont), presidiária e sujeito de sua pesquisa.



O pobre sociólogo Stanislas Prévine (André Dussollier)


Surpresos com o aspecto algo insólito de um Truffaut que teria abandonado as inigualáveis sofisticação e delicadeza sempre presentes no tratamento da infância, do amor e de temas banais do cotidiano — sabiamente elevados à dimensão do sublime —, cronistas e espectadores fiéis andaram em círculos diante de Uma jovem tão bela como eu. Ficaram em busca da imagem e do talento supostamente perdidos do cineasta. “Ele baixou o nível” — diziam uns. Ou se rendeu ao "comércio fácil" para cobrir o fracasso financeiro de Duas inglesas e o amor — acusavam outros.


Bernadette Lafont é Camille Bliss, a jovem do título

  
Porém, o problema é outro: geralmente não se perdoa o artista — a quem se é fiel — pela inovação e busca de rumos diferentes. Às mentes embotadas pela rotina é mais confortável e tranquilizador tudo permanecer como sempre foi. Truffaut tentou contra-argumentar, expor seus motivos. Não foi ouvido. Os fãs, transformados em críticos empedernidos, não quiseram saber da alternância, na filmografia do cineasta, de filmes tristes — como Duas inglesas e o amor — com alegres — a exemplo de Uma jovem tão bela como eu. Também não se importaram com o fato de Truffaut adentrar em momento particular de sua carreira, quando se dedicou a fazer troça do amor romântico (etéreo, contemplativo, platônico), causa dos males que afligiam as protagonistas de Duas inglesas e o amor.


Em Uma jovem tão bela como eu Truffaut é implacavelmente impiedoso com o ingênuo e arrogante Stanislas Prévine. O personagem contraria todas as evidências e se apaixona cegamente, até a ruína moral, pela trambiqueira Camille Bliss, a quem procura com o objetivo inicial de levantar dados à pesquisa que lhe permitirá o doutoramento em Sociologia. Camille usa e abusa de todos que lhe atravessam o caminho. Livra-se deles, com toda a falta de cerimônia, quando perdem a utilidade. Deseja apenas levar vantagem em tudo. Segundo Truffaut, o fascínio da jovem decorre do realismo selvagem e brutal da vida que leva. São atributos que a aproximam do status de irmã mais velha de Victor (Jean-Pierre Cargol), personagem-título de O garoto selvagem (L’enfant savage), realizado e estrelado por Truffaut em 1970.



Camille Bliss (Bernadette Lafont) - com Guy Marchand no papel de Roger ou Sam Golden - seria uma espécie de prima de Victor (Jean-Pierre Cargol) de O garoto selvagem (L'enfant savage, 1970), também de Truffaut


O filme é armado como peça burlesca, na qual o cineasta encontra oportunidade para anarquizar com várias convenções sociais. Não sobram espaços para inocência, delicadeza e bons sentimentos. Tais atributos são ridicularizados e demolidos. O andamento é acelerado, trepidante, em tom de farsa. Lembra algumas ofegantes comédias do cinema mudo. Também há pontos de contato com obras como Uma rajada de balas (Bonnie and Clyde, 1967), de Arthur Penn.


Foi acertada a escolha de André Dussolier para interpretar o sociólogo mal saído da universidade, total desconhecedor do mundo real. Acredita piamente que as teorias são suficientes para tanto. Dificilmente surgiria outro ator dotado de aparência ao mesmo tempo tão inexpressiva, arrogante e burlesca. O personagem Stanislas Prévine é o contraponto exemplar à experiente, vivida, amoral, cínica e sedutora Camille. Ela não demora a perceber que está diante de um autêntico pateta. imediatamente começa a manipulá-lo em proveito próprio — operação facilitada pela súbita paixão do pesquisador à prisioneira. Na segunda entrevista já a presenteia com doces e outros agrados. Logo se vê na impossibilidade de viver longe dela. Hélène (Kreis), auxiliar de pesquisa, tenta abrir os olhos de Stanislas a um possível engodo. Mas é rudemente destratada. Ele acredita piamente que Camille é inocente vítima da sociedade cruel. Enquanto a história avança, o espectador se delicia com imagens reservadas ao retrospecto que a cínica prisioneira faz de sua trajetória, repleta de pequenos golpes, até o acontecimento que a condenou à prisão. O sociólogo não percebe a razoável distância que deve haver entre a narração ouvida e a fidelidade aos fatos que o tem como guardião.


O sociólogo Stanislas Prévine (André Dussolier) entrevista Camille Bliss (Bernadette Lafont)

A auxiliar de pesquisa Hélène (Anne Kreis) tenta, inutilmente, chamar  Stanislas Prévine (André Dussollier) à realidade


As primeiras imagens ocupam o cenário de uma livraria. Uma cliente procura o título Mulheres encarceradas, tese de doutoramento em Sociologia com publicação anunciada há um ano. Porém, por motivos desconhecidos, não foi lançada. Por quê? A resposta virá com o desenrolar da história.


A uma penitenciária feminina chega o sociólogo em seu primeiro dia de contato com o mundo real. Será levado à presença de Camille, para a primeira entrevista. Ouve uma história que começou aos nove anos de idade, quando ela tramou e executou a morte do pai violento e alcoólatra que lhe quebrou o banjo de estimação. Camille passa o resto da infância em casa de correção, da qual foge nas proximidades da idade adulta. Encontra Clovis Bliss (Léotard), que a abriga na casa da mãe, Isobell Bliss (Géniat), sovina administradora de um posto de gasolina. As diferenças entre ambas logo se manifestam. Camille é expulsa. Porém, está grávida de Clovis. Casam-se. Descobre que a sogra esconde uma fortuna em casa. Com a cumplicidade do marido, consuma o roubo e elimina Isobell. Ambos fogem para Paris.



Maître Murene (Claude Brasseur) e Camille Bliss (Bernadette Lafont)


Mas não chegam à capital francesa. Ficam no meio do caminho, empregados no Colt Saloom, cabaré fuleiro de Sam Golden (Marchand), artista de fancaria que passa por cantor country. Enquanto Clovis serve mesas e limpa o estabelecimento, a garçonete Camille afana clientes e compartilha a cama com o chefe. Este só consegue fazer amor ao som dos motores acelerados de carros em Indianápolis. Ao descobrir a traição, Clovis, louco de ciúmes, é atropelado e hospitalizado. Entra em cena Florence (Girard), esposa de Sam. Novamente expulsa, Camille encontra abrigo no caminhão do dedetizador Arthur (Denner), católico ferrenho e moralista para quem tudo é pecado. Mas é alma boa, desinteressada. Vê na perdida Camille a oportunidade de praticar boas ações. Ela, em contrapartida, transforma-o em gato e sapato. Mesmo assim, concede a ele a oportunidade da primeira experiência sexual.



 Stanislas Prévine (André Dussollier) e Camille Bliss (Bernadette Lafont)


Entretanto, Florence contrata Murène (Brasseur), advogado picareta. Este se apresenta a Camille com objetivo de conseguir indenização para Clovis, devido ao atropelamento que sofreu. Ela assina um papel em branco, transformado por Florence em confissão de adultério. Também percebe que Murène e Clovis são empecilhos à sua vida. Decide eliminá-los. A atividade de dedetização do novo companheiro vem a calhar. Marido e advogado são atraídos a uma armadilha. Quando estavam prestes a sucumbir, envenenados, são salvos por Arthur que, ato contínuo, descobre toda a verdade sobre Camille. Premido pelo remorso, encontra no duplo suicídio a possibilidade de redenção. Planeja pular com ela do alto de uma torre. Mas somente Arthur despenca. Camille é presa, acusada de assassinato. É julgada e condenada por uma morte que não cometeu.


Camille Bliss (Bernadette Lafont) em fuga


Termina aí a história contada ao patético e crédulo Stanislas Prévine. Daí em diante buscará provas para inocentar a amada. Localiza testemunhas da queda de Arthur, dentre os quais um garoto que filmou o local naquele dia. Logo providencia a revelação e projeção do material. Vê-se claramente que Camille não provocou morte alguma. Libertada, passa a viver com o benfeitor e se estabelece como cantora. Porém, Clovis reaparece. Stanilas o surpreende com a amante. Em meio à desavença uma arma é disparada por Camille. Clovis morre. Mas quem vai preso é o sociólogo. Ela não move uma palha para ajudá-lo. Percebendo que foi usado e enganado, Stanislas se recorda do episódio da morte de Isobell Bliss e instrui seu advogado, Marchal (Delahaye), a conseguir as provas necessárias para responsabilizar a ex-amante. Toma conhecimento, dentro em pouco, de que as principais evidências do crime foram destruídas. Pior: a jovem, agora cantora famosa, seduziu Marchal com quem vive tórrido e público romance. A Stanislas nada resta fazer. Somente se resignar ao cumprimento da pena. Lá fora, num apartamento próximo à prisão, a auxiliar de pesquisa Hélène espera por sua libertação. Enquanto isso, prepara a publicação da incrível, cômica e dramática história.



Camille Bliss (Bernadette Lafont) e  Stanislas Prévine (André Dussolier)


Roteiro: François Truffaut, com base na novela Such a gorgeus kid like me (Bitch kitty), de Henry Farrell. Adaptação e diálogos: François Truffaut, Jean-Loup Dabadie. Música: Georges Delerue. Canções: Canção de Sam (Guy Marchand ‑ música; Jean-Loup Dabadie ‑ letra), adaptada por France Marie Watkins; Une belle fille comme moi (Jacques Datin ‑ música; Jean-Loup Dabadie ‑ letra); J’attendrai (Dino Olivieri ‑ música; Nino Rastelli ‑ letra). Direção de fotografia (Eastmancolor): Pierre-William Glenn. Decoração: Jean-Pierre Kohut-Svelko, assistido por Jean-François Stevenin. Enquadramentos: Walter Bal, assistido por Anne Khripounoff. Direção de produção: Marcel Berbert, Claude Ganz, Claude Miller. Assistente de direção: Suzanne Schiffman. Som: René Levert. Efeitos especiais: Jean-Claude Dolbert. Maquiagem: Thi-Lom Nguyen. Figurinos: Monique Dury. Gerente geral: Roland Thenot. Administração da produção: Christian Lentretien. Montagem: Yann Dedet, Martine Barraqué. Mixagem: Studios De Billancourt. Produção executiva: Marcel Berbert. Chefe de produção: Roland Thénot. Assistente de direção de arte: Jean-François Stévenin. Operador de câmera: Walter Bal. Assistente de câmera: Anne Khripounoff. Continuidade: Christine Pellé. Tempo de exibição: 98 minutos.


(José Eugenio Guimarães, 1980)

Um comentário:

  1. Olá, Marcos!

    Boa tarde!

    Desculpe-me pela demora. Nem sempre podemos responder em tempo hábil. Agradeço pelo "gostei". Espero que essa apreciação se aplique não somente ao filme como também ao que escrevi.

    Abraços.

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