domingo, 20 de julho de 2014

"NÃO HAVERÁ MAIS MORTES PERTO DESSA IGREJA, A NÃO SER QUE EU MESMO MATE"

Esta apreciação é de 1976. Trata de um western que vi em 1971, aos 15 anos. A realização me despertou a atenção pelo título: O céu à mão armada (Heaven with a gun, 1969), de Lee H. Katzin. Glenn Ford no papel de Jim Killiam transita entre o sagrado e o profano no cenário conflagrado pelas violentas disputas territoriais entre criadores de bovinos e carneiros. Na ocasião, eu ainda lamentava o total desconhecimento dos trabalhos mais representativos do ator, principalmente nos vigorosos westerns dirigidos por Delmer Daves na década de 50. Tais lacunas foram, felizmente, devidamente preenchidas. O céu à mão armada é influenciado pelo tom blasé do western europeu, principalmente na composição dos vilões. A narrativa é razoavelmente conduzida por Katzin, diretor formado pela TV, veículo para o qual assinou a maioria dos seus trabalhos. 







O céu à mão armada
Heaven with a gun

Direção:
Lee H. Katzin
Produção:
Frank King, Maurice King
King Brothers Productions, Metro-Goldwyn-Mayer
EUA — 1969
Elenco:
Glenn Ford, Carolyn Jones, David Carradine, Barbara Hershey, John Anderson, J. D. Cannon, Noah Beery Jr., Harry Townes, William Bryant, Virginia Gregg, James Griffith, Roger Perry, Claude Woolman, Ed Bakey, Barbara Babcock , James Chandler, Angelique Pettyjohn, Jessica James, Bee Tompkins, Bill Catching, Al Wyatt Sr., Ed McCready, Barbara Dombre, Miss Eddie Grispell e os não creditados Bill Coontz, Rusty Lee.



O diretor Lee H. Katzin nas locações de seu As 24 horas de Le Mans (Le Mans, 1971)


O céu à mão armada! Impossível esquecer o momento em que vi no hall do Cine Odeon, de Viçosa/MG, o cartaz desse filme. Era 1971; estava com 15 anos. Passei bons 10 minutos examinando-o, bem como as fotos de cena que o encimavam. Na verdade, estava impressionado com o título chamativo, forte, enfático, estranho. Ali, de pronto, firmei com meus botões o compromisso de assisti-lo. Precisava saber o significado dos dizeres “O céu à mão armada”. Até então, título algum me despertara tanto a atenção. Porém, independente disso, iria vê-lo de qualquer maneira. Por nada perderia um western — gênero de minha afeição —, além do mais estrelado por Glenn Ford, ator que me atraiu um ano antes no razoável A pistola do mal (Day of the evil gun, 1968), de Jerry Thorpe. Já o tinha visto em 1967, na reapresentação da comédia Não caia n’água marujo (Don’t go near the water, 1957), de Charles Walters. Mas nada nesse filme me pareceu particularmente memorável.


Infelizmente, ainda desconheço a maior parte da filmografia de Glenn Ford[1]. Sei que meu pai o apreciava. Ouvia-o sempre falar da parceria do ator com o diretor Delmer Daves, que gerou os célebres Ao despertar da paixão (Jubal, 1956), Galante e sanguinário (3:10 to Yuma, 1957) e Como nasce um bravo (Cowboy, 1958); mas também de Gatilho relâmpago (The fastest gun alive, 1956), de Russell Rouse; Sangue por sangue (The man from the Alamo, 1953), de Budd Boetticher; Um pecado em cada alma (The violent men, 1955), de Rudolph Maté; Irresistível forasteiro (The sheepman, 1958), de George Marshall; Cimarron (Cimarron, 1960), de Anthony Mann; Os corruptos (The big heat, 1953), de Fritz Lang; Sementes de violência (Blackboard jungle, 1955), de Richard Brooks; Casa de Chá do Luar de Agosto (The Teahouse of the August Moon, 1956), de Delbert Mann; e Gilda (Gilda, 1946), de Charles Vidor.


O personagem de Glenn Ford flutua entre as mulheres interpretadas por Carolyn Jones e Barbara Hershey em O céu à mão armada (essas imagens não pertencem ao filme)


O céu à mão armada é razoável western. A ação ― bem distribuída entre pradarias, fazendas e cidade ― está centrada no conflito entre vaqueiros e criadores de carneiros. Os primeiros, economicamente mais fortes, inclusive em armamento, alegam que não há pastos e água suficientes aos dois rebanhos. Também estão apoiados no preconceito da incompatibilidade do convívio entre bovinos e ovinos. O tema não é novo. Diferente é a abordagem. O espectador, habituado ao figurino clássico do western, poderá estranhar a caracterização de determinados personagens e o tratamento explicitamente violento de algumas cenas. O diretor Lee H. Katzin e o roteirista Richard Carr deixaram-se influenciar, provavelmente, pelo perfil blasé incorporado pelos intérpretes dos westerns europeus. O sádico e amoral Cook Beck (Carradine), filho do todo poderoso barão de gado Asa Beck (Anderson), é exemplo dessa nova modelagem. A índia hopi Laloopa (Hershey), que se acerca do protagonista Jim Killiam (Ford), também foge à caracterização costumeira dos peles-vermelhas. Ela é em tudo diferente. Parece-se mais a uma hippie despida de seus adereços, perdida no tempo e no espaço. Desfila na tela como um suave e inocente anacronismo, apesar da boa interpretação de Barbara Hershey. Ao final, a canção de Paul Francis Webster, estranha a um western, causa incômodo.



O vilão Cock Beck (David Carradine)

A índia Laloopa (Barbara Hershey)


O céu à mão armada também absorve dos congêneres europeus a rapidez no desenvolvimento da ação. Há, além do mais, farto uso de primeiros planos — em momentos de tensão — e tomadas subjetivas — nem sempre bem utilizadas — a partir de pontos de vista superiores. Sem esquecer do jeito mais despojado de filmar, dando a aparência de um estilo mais solto e espontâneo.


Acerca da violência, mais elevada que a habitual, chama a atenção a sequência inicial, de ataque, perseguição e linchamento do índio (Al Wyatt Sr.), pai de Laloopa. As cenas, crudelíssimas, expõem o processo com lentidão e visibilidade extremas, evidenciando a indiferença dos assassinos. No mesmo diapasão, Scotty Andrews (Bakey), criador de carneiros, é severa e covardemente tosquiado a mando de Asa Beck; e Laloopa é brutalmente violentada por Cock. Ao menos o ato abominável perpetrado pelo personagem de Carradine tem justo prolongamento na catártica sequência em que é surrado por Jim Killiam, sem condições de lhe opor resistência.



Jim Killiam (Glenn Ford) entra em cena, mas é tarde para salvar o pai de Laloopa (Al Wyatt Sr.)


Jim Killiam, ex-presidiário e pistoleiro regenerado convertido em pastor, é a razão de ser do título O céu à mão armada. Esse divulgador das paragens celestiais, porta-voz das vontades divinas, pregador da paz e da boa vontade entre os homens, não aposentou as armas. Atirador exímio, sempre recorre aos revólveres, também aos punhos, quando necessita se impor de modo mais enfático. Frequenta o saloon e se arrisca nas mesas de jogo. Representa o sagrado sem abdicar do profano. Inaugura sua igreja num galpão improvisado em meio ao cenário conflagrado pela disputa dos criadores. Seus cultos, integradores, estão abertos a todos os setores da comunidade, não importando origens raciais e extração econômica. Killian nada teme. Tem na proprietária do saloon e cafetina Madge McCloud (Jones) uma espécie de consciência moral. Acolhe Laloopa e toma a defesa dos criadores de carneiros. Os vaqueiros tentam desacreditá-lo moralmente. Queimam-lhe a igreja quando a contenda se exacerba após o assassinato de Cock Beck pelas mãos do vingativo Scotty Andrews.




Acima e abaixo, o pistoleiro e pastor Jim Killiam (Glenn Ford)


Os cidadãos, unidos na inútil tentativa de debelar as chamas que consomem o templo, perfilam-se consternados diante da destruição. Por sua vez, o individualista Killiam se prepara para o ajuste de contas com Asa Beck. Mas Madge lhe diz que é hora de decidir: ser pastor ou pistoleiro, apoiar-se na Bíblia ou nas armas, pois não pode servir a dois senhores ao mesmo tempo. Chama-lhe a atenção para o fato de haver organizado uma igreja, constituída de seguidores solidários. Portanto, alternativas coletivas, duráveis e legítimas, devem ser buscadas para o conflito.



Jim Killiam (Glenn Ford) durante o culto

O cínico e provocador pistoleiro Mace (J. D. Cannon) provoca Jim Killiam (Glenn Ford)

Barbara Hershey no papel de Laloopa


O céu à mão armada está entre os poucos westerns que recusam o apelo à solução individualista, apoiada somente na força e integridade do herói. Chega a emocionar a visão da comunidade desarmada irrompendo no cenário, pondo fim ao que seria um sangrento embate entre os criadores. Asa Beck se vê obrigado a abrir mão de suas decisões arbitrárias. Infelizmente, a nefasta canção A lonely place de Paul Francis Webster (letra) e Johnny Mandel (música) compromete o final, deixando-o à beira do desastre. Torna-o semelhante a algumas ilustrações de folhetos proselitistas das Testemunhas de Jeová. Só faltaram dizeres como: “Então, vaqueiros e criadores de carneiros esqueceram diferenças e uniram seus rebanhos que, doravante, consumiriam juntos pastagens e águas comuns. E a concórdia se instalou nos corações humanos”.


Jim Killiam (Glenn Ford): "Não haverá mais mortes perto desta igreja! A não ser que eu mesmo mate!"


No tocante às interpretações, merecem destaque, além de Barbara Hershey, John Anderson, J. D. Cannon, David Carradine e Carolyn Jones. Anderson está perfeito como o despótico e frio Asa Beck. Cannon interpreta Mace, o provocador pistoleiro a soldo de Asa, que revela publicamente o passado pouco louvável de Killiam. Sua pose arrogante atiça a ira do espectador, o mesmo acontecendo com David Carradine na pele do mimado, indiferente e perverso Cock Beck. Carolyn Jones, com sua beleza singular e carregando as marcas do tempo, passa verossimilhança como a experiente e cética Madge. Quanto a Glenn Ford, pode-se dizer que está à vontade no papel. Poderia, porém, oferecer desempenho mais nuançado dadas as ambiguidades de seu personagem. Além do mais, passa a impressão de assexuado. O filme sequer explora as tensões resultantes de seu relacionamento com Madge e Laloopa, apesar de abrir caminhos para tanto. Em todo caso, é impactante ouvi-lo dizer, carregado de convicção, antes de abrir fogo contra dois provocadores: "Não haverá mais mortes perto desta igreja! A não ser que eu mesmo mate!".






Roteiro: Richard Carr. Direção de fotografia (Metrocolor, Panavision): Fred J. Koenekamp. Música: Johnny Mandel. Montagem: Dann Cahn. Produção associada: Red Hershon, Herman King. Direção de arte: George W. Davis, Frank Paul Sylos. Decoração: Henry Grace, Don Greenwood Jr. Penteados: Mary Keats. Gerente de unidade de produção: Sam Manners. Assistente do gerente de produção: Lindsley Parsons Jr. (não creditado). Supervisão de gravação: Franklin Milton. Assistente de direção: William P. Owens. Maquiagem: William Tuttle. Letras das canções: Paul Francis Webster. Assistente de contrarregra: Matty Azzarone (não creditado). Dublês: David S. Cass Sr. (não creditado), Bill Catching (não creditado), Gerry Searle (não creditado), Neil Summers (não creditado), Casey Tibbs (não creditado), Al Wyatt Sr. (não creditado). Orquestração musical: Albert Harris (não creditado). Pesquisa de locações: Jack N. Young (não creditado). Tempo de exibição: 99 minutos.


(José Eugenio Guimarães, 1976)




[1] Tais lacunas foram, felizmente, devidamente preenchidas nos anos 80. A presente apreciação de O céu à mão armada é de 1976.