domingo, 4 de outubro de 2015

A RUIDOSA REINVENÇÃO DE NELSON PEREIRA DOS SANTOS CHANCELADA POR OGUM

Nos planos artístico, político, pessoal e afetivo, quais os custos de uma ruptura após anos de carreira coerentemente consolidada? O precursor do Cinema Novo, Nelson Pereira dos Santos, certamente responderia melhor que qualquer outro. Pagou preço elevado pela ousadia de se reinventar com O amuleto de Ogum (1974). Os setores mais ortodoxos da crítica e do público receberam com perplexidade e excesso de má vontade a realização. É uma aventura obediente aos cânones do filme policial, ambientada na terra sem lei da Baixada Fluminense do estado do Rio de Janeiro. Interpola o drama de migrantes nordestinos com a marginalidade, violência e o misticismo religioso. A umbanda — até então percebida pelo prisma do preconceito que a transformava em mero canal de alienação — ganha a centralidade do olhar compreensivo e respeitoso, à moda do etnógrafo em campo. De fora ficaram os apriorismos sociológicos e políticos tão comuns ao Cinema Novo. Nelson deixa de ser a consciência externa leninista das massas excluídas para conceder voz ativa a esses setores. É uma valorização sem precedentes dos elementos da cultura popular. O processo transformará o cineasta na primeira vítima do patrulhamento ideológico segundo a expressão cunhada pelo diretor Carlos Diegues quatro anos depois da realização de O amuleto de Ogum. A apreciação a seguir, escrita em 1977, passou por revisão e ampliação em 1988.






O amuleto de Ogum

Direção:
Nelson Pereira dos Santos
Produção:
Nelson Pereira dos Santos
Regina Filmes, Embrafilme
Brasil — 1974
Elenco:
Jofre Soares, Anecy Rocha, Ney Sant'Anna, Maria Ribeiro, Jards Macalé, Emmanuel Cavalcanti, José Marinho, Francisco Santos, Antônio Carneiro, Erley José, Washington Fernandes, Luiz Carlos Lacerda de Freitas, Vargas Jr., Waldir Onofre, Antônio Carlos de Souza Pereira, Flávio Santiago, Armando Santana, Ilya Flaherty São Paulo, Midani, Tininho, Russo, Miguelão, Quim Negro, Amazonense, Adamastor, Cafuringa, Clóvis Scarpino, Olney São Paulo, Manuel Cavalcanti, Jorge de Oliveira, Sebastião Pimentel, Jorge Meliane, Jorge Roberto, Tadeu Oliveira, Antônio L. Dias, Francisco Brum, Paulo Roberto, Gilson Felipe, Rosana da Vinha, Tarcísio José, Sônia Dias, Miriam, Rosenilda Matos, Joãozinho Canarinho, Dirce Consuelo Maria, Alexandre do Atabaque, Diva Correa da Silva, Luiz Carlos Braga, José Carvalho, Povo de Duque de Caxias/RJ.


O diretor de O amuleto de Ogum, Nelson Pereira dos Santos


A narrativa de O amuleto de Ogum está bem adiantada quando Severiano (Jofre Soares) — chefe de organização criminosa que explora o jogo do bicho e o extermínio de “indesejáveis” em Duque de Caxias, município da Baixada Fluminense do estado do Rio de Janeiro[1] — explode furioso. Provavelmente, é o momento mais emblemático deste décimo primeiro longa-metragem de Nelson Pereira dos Santos e ponto de radical inflexão em sua carreira. É uma virada ruidosa, sem precedentes. O cineasta praticamente se reinventa. Pode-se dizer, inaugura outro início na filmografia aberta em 1955 com o seminal Rio 40 graus[2]. É como se, de repente, lançasse-se numa profunda autocrítica e prestação de contas com o passado. Conforme admitiu, O amuleto de Ogum é quase um primeiro filme após cerca de 20 anos de carreira coerente, firmemente consolidada. A respeito, expressou-se o diretor com a maior tranquilidade e coragem. Suas declarações repercutiram de forma estrondosa e foram mal compreendidas, não apenas pela imprensa. Público, amigos e colegas também reagiram com estupefação.


Severiano está inconformado. Com o corpo fechado pelas forças da umbanda, Gabriel (Ney Sant’Anna) é uma ameaça permanente ao plenipotenciário. Aparentemente, o chefão do crime tem a consciência secularizada. Porém, se não acredita em forças ocultas não custa nada lhes dar atenção, ainda mais em momento de extrema precisão. Fracassaram todas as tentativas para livrá-lo do potencial oponente, inclusive as artes de Gogó (Washington Fernandes) — pai de santo picareta contratado para desfazer a proteção de Gabriel. Agora o autêntico Erley (Erley José — pai de santo de verdade) foi chamado. Honesto, expõe didaticamente os significados e propósitos da umbanda a Severiano. É um sistema de crenças voltado à prática do bem, ressalta.


Gabriel  (Ney Sant'Anna) passa pela prova dos nove do corpo fechado


Porém, a lábia do capo criminoso é irresistível. Afirma convicto que gostaria de ser um homem bom. O problema são os inimigos: não deixam! Recebe um passe. Entra em transe imediato. Rodopia, contorce-se, grita, percorre o ambiente, vai ao chão. É cercado pelos auxiliares mais próximos, assustados. O desconcertado assessor jurídico, Dr. Baraúna (Emmanuel Cavalcanti), exorta-o: "Contenha-se, Severiano!", "Respeite-se!". Com muito custo é controlado. A entidade que o dominava é transferida a outro, a seguir ao sacerdote. Normalizada a situação e ainda sob os efeitos colaterais da possessão, Severiano reafirma a vontade de mudar. No dia seguinte o guarda-costas Zé Índio (Antônio Carneiro) — crente nos poderes da umbanda e confiando na sinceridade do chefe — encomenda o material necessário ao trabalho de mudança. Diante disso, Severiano reage em plena fúria: "Eu vou lá me meter com essas coisas de Exu? Esses troços de gente analfabeta, atrasada, primitiva? Agora eu entendo porque esse menino ainda está vivo. É que ao invés de homens valentes eu tenho uma porção de velhas que só querem comer e encher o bucho. Ao invés de armas usam velas, rosas, guizos e fitinhas. Ao invés de matar meus inimigos ficam matando bodes e galinhas".


Em primeiro plano, Severiano (Jofre Soares) e o Dr. Baraúna (Emmanuel Cavalcanti)


Toda a sequência — do transe de Severiano à liberação de sua fúria sobre o auxiliar — revela momentos vigorosos e convincentes do cinema de Nelson. O dado cômico também se faz presente, de modo um tanto involuntário. Afinal, não eram esperadas a possessão e a explosão irada do chefe. Jofre Soares está magistral e visceral. Porém, tudo o que acontece ao personagem serve para exemplificar a perplexidade causada por Nelson Pereira dos Santos com O amuleto de Ogum.


A exortação do Dr. Baraúna para Severiano se comportar e se dar ao respeito bem como a furiosa admoestação em Zé Índio servem para ilustrar a reação dos setores mais conservadores — da crítica, do cinema e público — a O amuleto de Ogum. O diretor, com sua virada, assombrou e constrangeu. Deveria ser chamado às falas! Praticamente foi o que houve, principalmente no tocante à valorização da umbanda. Nelson deveria se conter e se dar ao respeito. A religião, com papel tão destacado em seu filme, deveria continuar a ser tratada como mera ilusão alienadora.


A trajetória do cineasta, sempre apoiada no ponto de vista da objetividade sociológica — mesmo em seu momento mais simbolista —, geralmente fazia a denúncia — segundo os cânones do materialismo ortodoxo —, dos fatores que geravam o atraso e a apatia popular. Agora, com o presente revival, Nelson abandona o papel de demiurgo das massas consideradas ignaras, necessitadas de emancipação e condução por uma iluminada consciência exterior leninista. Vários aspectos críticos, problemáticos à turma do Cinema Novo e aos seus porta-vozes na imprensa, irrompem em O amuleto de Ogum como suportes essenciais de uma narrativa aberta, espontânea, emancipada de convenções. Tornam-se parte de algo que demanda melhor compreensão e, acima de tudo, aceitação, principalmente os elementos religiosos. O diretor deixa de se pronunciar a partir de sua consciência para incorporar a fala e a sabedoria do povo, ou do que é gestado na cultura popular. De certo modo, concede voz ativa aos próprios setores desse meio: passam a se expressar sem a necessidade da intermediação purificadora dos filtros. A direção se põe apenas no papel de contar uma história, incorporada tal qual foi recebida.


Nada de apriorismos sociológicos e políticos. É como se a postura do etnógrafo em campo envolvesse por completo o cineasta. Registra o que vê, sem tomar partido. O amuleto de Ogum mescla fidelidade, romance, traição e crônica policial ao campo do misticismo religioso, no qual a umbanda tem papel preponderante no balizamento de crenças e na geração do aparato linguístico necessário à afirmação de determinados setores, em particular daqueles socialmente deixados à margem. Confere identidade e posicionamento aos grupos que povoam cenários largados ao Deus dará, tão distantes das áreas de abrangência dos poderes instituídos e imersos na violência gestada por diversas formas de mandonismo e arbítrio. É elemento de afirmação e resistência. Assim deve ser compreendida.


Gabriel (Ney Sant'Anna), o homem do corpo fechado


A virada de Nelson pode não ter frutificado na intensidade pretendida, ainda mais na fundação de uma proposta de valorização da cultura popular pelo cinema brasileiro em grau parecido ao da realização. Outrossim, se lhe acarretou dissabores produziu resultados de alta relevância: contribuiu ao reconhecimento da umbanda como religião assumidamente popular, segundo Erley José — consultor ao tema e orientador do cineasta no desvendamento empírico dessa linguagem. O pai de santo improvisado em ator apresentou Nelson Pereira dos Santos ao básico da umbanda, quimbanda e do candomblé. Revelou-lhe as singularidades desses sistemas. Agradecido, afirmou: graças ao realizador e ao filme, a umbanda, sempre estigmatizada, ganhou legítimo status de religião popular. Isso em parte arrefeceu as perseguições sofridas, principalmente da polícia.


O que não convence das declarações de Nelson Pereira dos Santos é a postura neutra em relação ao universo retratado. Como se tal fosse possível em quaisquer âmbitos do fazer e do conhecer. A partir do momento em que se lançou à realização de O amuleto de Ogum, desde o roteiro de sua autoria, algum posicionamento o cineasta assumiu. Pelo próprio tom das entrevistas concedidas, a pretendida neutralidade não se faz presente. Além do mais, como decorre da apreciação, a história é francamente simpática ao tema exposto e aos que depositam fé nas possibilidades da umbanda. Talvez o cineasta pretendesse afirmar uma postura imparcial, mas até isso é passível de dúvidas.


A reinvenção de Nelson Pereira dos Santos não significou rompimento radical com a carreira consolidada — conforme a alusão a O amuleto de Ogum como equivalente ao primeiro filme. Por mais temerário que seja afirmar algo sobre a trajetória de um cineasta com base apenas nas impressões de espectador e leitor de artigos veiculados na imprensa, é certo que o filme lhe fez bem. Interrompeu um período iniciado em 1967 com a realização de El justiceiro. A partir daí, diante das injunções políticas decorrentes do endurecimento do regime ditatorial e da censura, Nelson se refugia na concepção de obras fechadas nelas mesmas, praticamente impenetráveis a um público cada vez mais restrito. Nessa fase de hermetismo — transcorrida no exílio que se impôs em Parati/RJ — enviava recados quais mensagens cifradas, nem sempre facilmente decodificáveis, em Fome de amor (1968), Azyllo muito louco (1970) e — com a exceção de Como era gostoso o meu francês (1971) — a espantosa ficção científica de tons apocalípticos Quem é Beta? (1972). Com este filme Nelson deu a impressão de entrar num beco sem possibilidades de saída e retorno. Foi quando teve a atenção voltada para o livro Tenda dos milagres[3] (1968), de Jorge Amado.


Entretanto, a entrada no universo do escritor baiano seria adiada por alguns anos. Francisco Santos — motorista e amigo de Tenório Cavalcanti — notório político e editor do "sangrento" e popular jornal Luta Democrática — surgiu com uma história policial ambientada em Duque de Caxias. O texto, alusivo à imigração de nordestinos para a Baixada Fluminense, tinha entre os personagens o patrão alagoano do autor, radicado no estado do Rio de Janeiro desde 1926, para onde veio em busca de melhores condições de sobrevivência. O roteiro escrito por Nelson alterou substantivamente o original. O drama dos imigrantes nordestinos permaneceu, bem como os aspectos policiais da trama. Mas Tenório Cavalcanti foi, em justa medida, substituído pelo personagem Severiano. A umbanda também ganhou relevância.


O invulnerável Gabriel é o protagonista. Com aproximados 20 anos, proveniente de Alagoas, desembarca em Duque de Caxias. Traz carta de recomendação para o Dr. Severiano. Este o acolhe entre os funcionários, quase todos experimentados pistoleiros. Logo está no ofício. Participa do assassinato de um bicheiro. A seguir, atrapalha-se num serviço de rua e provoca a morte acidental da esposa de um promotor. O equívoco acarreta na ira de Chico de Assis (Francisco Santos), preceptor do jovem. Desentende-se! Gabriel recebe vários tiros. Projétil algum o penetra. Confirmam-se os boatos: Ogum o protege, com todo o aparato da umbanda.


Gabriel (Ney Sant'Anna) e Severiano (Jofre Soares)


Assim cresce a autoconfiança do imaturo rapaz. Sabe apenas que nada deve temer. Preocupado, Severiano tenta eliminá-lo, principalmente ao perceber a atração da amante Eneida (Anecy Rocha) pelo empregado de corpo fechado. Conduzido a uma armadilha urdida pelo chefe, Gabriel assassina covardemente, em plena Duque de Caxias, um improvável figurão. O fato acentua os tons cômicos e surreais de O amuleto de Ogum. A vítima é tão somente o Presidente da Cruz Vermelha (!), interpretado distraidamente por Midani em caracterização para lá de fuleira. Jornais sensacionalistas ampliam o absurdo da ação. Estampam manchetes nas quais a ONU (isto mesmo, a Organização das Nações Unidas!) cobra apuração rigorosa ao crime.


Material de divulgação para salas de exibição: Eneida (Anecy Rocha)


Improvisos cômicos à parte, o mais interessante e revelador do inusitado assassinato são os momentos que o precedem: o sereno Gabriel assobia o samba A voz do morro, de Zé Keti. É o tema do primeiro longa de Nelson Pereira dos Santos, o fundador Rio 40 graus (1955). O personagem vivido por Ney Sant'Anna é — pelas suas origens nordestinas e, principalmente, por causa da mãe interpretada por Maria Ribeiro —, prolongamento da obra mestra do cineasta: Vidas secas (1963). Pode ser associado ao filho mais novo do casal de retirantes Fabiano (Átila Iório) e Sinhá Vitória (Ribeiro). O amuleto de Ogum começa com o assassinato do pai de Gabriel em Palmeiras, Alagoas. Quem traz a notícia é o irmão mais velho (Armando Sant'Anna), mortalmente ferido. A mãe se desespera. Antes de providenciar sepultura aos mortos leva o garoto (Ilya São Paulo) ao terreiro de umbanda onde terá o corpo fechado sob chancela de Ogum. No ato, recebe o amuleto que simboliza o orixá, medalha da qual nunca se separa. O anteparo funcionará enquanto a mãe estiver viva. Dez anos após, cumprindo a sina geral do nordestino, Gabriel é mais um imigrante a buscar oportunidades no "Sul Maravilha".


Maria Ribeiro interpreta a mãe de Gabriel


Organicamente O amuleto de Ogum é uma peça de cordel ordenada e contada por um cego (Jards Macalé). Para aplacar a violência de um trio de assaltantes (Waldir Onofre, Antônio Carlos de Souza Pereira e Flávio Santiago) na madrugada de Duque de Caxias, narra a pedidos uma "história de verdade que eu inventei agorinha". Nela desponta Gabriel, um ingênuo que ignora qualquer princípio moral. Funciona como pau mandado. Das coisas essenciais da vida nada sabe. Tem apenas o corpo fechado, benção eficaz e fundamental para sobreviver na Baixada Fluminense sem lei, em meio aos muitos interesses conflitantes. Depois de abandonado por Severiano, desaparece com a amante deste, a impulsiva, independente e pragmática Eneida. Ela ama Gabriel, mas busca, acima de tudo, um lugar ao sol. É uma guerreira que instrumentaliza as relações em proveito próprio. Com garra projeta o amante no submundo de Duque de Caxias. Bancado por empresários locais, o homem do corpo fechado monta a própria gangue, à base de menores de idade sem eira nem beira. Logo está em guerra com Severiano. Experimenta momentos de fruição na casa noturna do homossexual Madame Moustache (Luiz Carlos Lacerda). Neste ambiente de luz vermelha ouve Roberto Carlos e Rolling Stones; envolve-se com outras mulheres e provoca a fúria enciumada de Eneida, que o abandona. Numa emboscada é dado por morto. Mas é resgatado vivo por Erley José e seus seguidores. Abrigado no terreiro do pai de santo, inicia-se de fato nos princípios da umbanda. Os ensinamentos ministrados são didaticamente expostos por Nelson Pereira dos Santos. No entanto, enquanto está afastado, a quadrilha que arregimentou é violentamente desbaratada a mando de Severiano. No lançamento de O amuleto de Ogum as cenas das torturas aos pivetes foram eliminadas por decisão da Censura Federal. Cruas e realistas, desprovidas de firulas, certamente ensejaram imediata comunicação com as barbaridades cometidas em delegacias e pelos aparatos clandestinos de repressão. Estes ainda atuavam quando as filmagens aconteceram.


Eneida (Anecy Rocha) e Gabriel (Ney Sant'Anna)


Depois de abandonar Gabriel, Eneida está novamente com Severiano. Pela quantia afortunada de 80 mil cruzeiros revela o ponto fraco do rapaz. Na sequência, no Nordeste, pistoleiros tentam assassinar a mãe do protegido de Ogum. Por engano outra mulher é morta. No entanto, circulam notícias equivocadas. Desesperado, clamando vingança, Gabriel invade a fortaleza de Severiano para o definitivo acerto de contas. Guardada por Dr. Baraúna, Eneida aguarda o término do tiroteio para decidir o rumo a tomar. Só deseja abandonar o mundo da prepotência masculina. Severiano morre. Gabriel, baleado, tomba na piscina, aparentemente morto. Eneida parte, deixando Dr. Baraúna entregue à bebedeira. A mãe de Gabriel desembarca em Duque de Caxias, preocupada. No mar, onde fora lançado, o homem do corpo fechado ressuscita sob as águas. Um salto — possível apenas às entidades sobrenaturais (movimento possibilitado por um simples flashforward) — o projeta de pé e firme sobre a proa de um barco. Empunha dois revólveres e exclama "ÊH!", à moda da umbanda. Memorável renascimento, repleto de simbolismos. Atesta a resistência não só da cultura popular celebrada por Nélson Pereira dos Santos como do vigor e capacidade de reinvenção do cineasta. Também serve de metáfora ao cinema brasileiro: sempre renasce e se afirma, não importam as dificuldades em sua sempre cambaleante mas decidida trajetória.


Material de divulgação para salas de exibição: o emblemático plano final de O amuleto de Ogum  - Gabriel (Ney Sant'Anna) ressurge, simbolizando a força da cultura popular e do próprio cinema brasileiro

  
Apesar do aparente desleixo formal O amuleto de Ogum transpira vigor e inventividade. É marcado pelo improviso e pela mais visível espontaneidade, principalmente no quesito atuações. Atores, mesmo, são Jofre Soares, Anecy Rocha e Emmanuel Cavalcanti. Os demais fazem o que podem, segundo as exigências do roteiro. Ney Sant’Anna é terrivelmente amador. Mas tudo isso obedece a um propósito sintonizado com a realidade conturbada de Duque de Caxias e da Baixada Fluminense — ainda mais na ocasião das filmagens. Na época, toda a região era, sem tirar nem por, a terra de ninguém. Os habitantes, institucionalmente abandonados, cuidavam de sobreviver do jeito que podiam, confiando apenas nas próprias e inventivas capacidades. Não que tal situação tenha substantivamente mudado com o passar dos anos.


Entretanto, em outros aspectos, é uma construção sólida. As encenações dos cultos de umbanda não decorrem de improvisos nas filmagens. São reais e captadas da forma como transcorrem. Nesse ponto, O amuleto de Ogum é praticamente um documentário sobre uma religiosidade que não ressurge segundo as cartilhas do espetáculo. Um distanciamento respeitoso da câmera em relação aos ritos, rezas e explicações a tudo confere autenticidade. Poucas vezes um filme valorizou tanto o seu objeto e os sujeitos que o vivificam.


Como filme de ação, segundo as convenções do gênero policial, O amuleto de Ogum se sai brasileiramente muito bem. Dado o nosso know how no metier, perseguições, tiroteios, emboscadas, agressões e momentos de suspense não são meras abstrações ou enfeites performáticos. Integram-se a uma determinada realidade com seu traçado urbano e suas condições viárias. Exemplo dessa união mais que adequada entre composição fílmica e décor real é o momento em que Chico de Assis e Gabriel improvisam a fracassada emboscada no centro de Duque de Caxias. O primeiro banca um vendedor ambulante de loterias. O outro passa por cego que circula o entorno. Tudo está bem amarrado à movimentação e geografia locais. A cidade, bairros, periferia e zona rural se integram à ação com naturalidade, principalmente nos momentos de arregimentação dos pivetes, nas cenas da granja que abriga a quadrilha de Severiano e no interior da fortaleza de Tenório Cavalcanti: ela serve à moradia do personagem de Jofre Soares. Graças ao parentesco do ator Emmanuel Cavalcanti com o político, o imóvel se tornou componente essencial ao drama.


Dr. Baraúna (Emmanuel Cavalcanti) e Eneida (Anecy Rocha)


A maior parte da ação foi filmada em Duque de Caxias. Mas a necessidade de imprimir cor local às ambientações dispersou as tomadas por Feira de Santana, na Bahia — onde se passam os momentos com Maria Ribeiro — e em Jardim Brasil, periferia de São Paulo. Aí se dá a visita de Gabriel e Eneida à família desta, formada de imigrantes nordestinos. Neste instante, o filme respira em elevado estado de autenticidade. Improvisa-se uma confraternização familiar verdadeira junto a um grande banquete que atrai vizinhos e curiosos. É uma integração temperada com muita comida, música ambiente, bebedeira e danças sobre a laje da habitação em construção.


A música é ponto alto. Além do convincente emprego de obras de Roberto Carlos e dos Rolling Stones, há os temas compostos por Jards Macalé. Alguns foram concebidos enquanto as imagens corriam na moviola. Fazem uso inventivo da percussão e de sons artificialmente elaborados em estúdios. Valem-se delas as cenas do desespero da mãe de Gabriel — quando do assassinato do marido e filho mais velho — e as duras tomadas dos menores torturados.


Apesar de toda a celeuma provocada no lançamento, O amuleto de Ogum fez boa coleção de prêmios. Do Instituto Nacional do Cinema, em 1974, levou a Coruja de Ouro pela Melhor Direção e o Prêmio Adicional de Qualidade. Nesse mesmo ano recebeu, como Melhor Filme e Melhor Direção, os prêmios Air France de Cinema. Em 1975 a realização e o diretor foram indicados à Palma de Ouro no Festival de Cannes; no Festival de Cinema de Gramado faturou o Kikito de Ouro para Melhor Filme. Anecy Rocha, pela Associação Paulista de Críticos de Arte, venceu como Melhor Atriz.


Por fim, um aspecto bastante significativo e revelador: a pergunta de Severiano, ainda no começo da narrativa, ao receber as credenciais de Gabriel: “Ele é branco?”.

Gabriel (Ney Sant'Anna) e pai Erley (Erley José)


Direção de fotografia (Eastmancolor): José Cavalcanti, Nelson Pereira dos Santos, Hélio Silva. Música: Jards Macalé. Direção de produção: Carlos Alberto Diniz. Assistência de produção: Albertino "Tininho" Nogueira da Fonseca. Equipe de produção: Carlos Alberto Diniz, Francisco Santos, Tininho Nogueira da Fonseca, Ismael Ferreira, Epitácio Cezar, Laurita Sant'Anna. Roteiro e adaptação: Nelson Pereira dos Santos com base em história de Francisco Santos. Diálogos: Nelson Pereira dos Santos. Assistência de direção: Luiz Carlos Lacerda de Freitas, Tizuka Yamasaki. Assistentes de câmera: Sandoval Doria, João Carlos Amorim, Adilson. Efeitos especiais fotográficos: Célio Coutinho Gonçalves. Eletricista-chefe: Sandoval Teixeira Dorea. Eletricista: Sandoval Mota. Técnico de som: Victor Raposeiro. Som direto: Albertino Nogueira da Fonseca, Ricardo Moreira. Sonoplastia: Geraldo José, R. Surtan. Montagem: Severino Dadá, Paulo Pessoa. Figurinos e cenografia: Luiz Carlos Lacerda de Freitas. Tempo de exibição: 112 minutos.


(José Eugenio Guimarães, 1977; revisão e ampliação em 1988)



[1] Quando as filmagens tiveram lugar, a fusão do estado da Guanabara — com capital na cidade única do Rio de Janeiro — ao estado do Rio de Janeiro ainda não havia ocorrido.
[2] Isto se não for levado em conta o documentário curto Juventude, realizado em 1949.
[3] Filmado em 1977, sob o mesmo título, por Nelson Pereira dos Santos.

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