domingo, 8 de novembro de 2015

A HISTÓRIA IMEDIATA DE SARACENI OU "O FILME POLÍTICO EXEMPLAR", SEGUNDO GODARD

Meio século se passou. Conjunturalmente, é tempo considerável; estruturalmente, nem tanto. Porém, em qualquer plano permanece atual o ousado exercício cinematográfico realizado por Paulo César Saraceni em 1965. O desafio é manifesto político, afetivo, histórico e cinematográfico. Poucos filmes conseguiram a proeza de captar com tanta sobriedade e emoção o sentido (ou sua falta) de um determinado momento — tomado pela ressaca provocada pelo golpe de Estado de 1964, no Brasil, nos primeiros meses da implantação do regime militar. O roteiro enxuto e preciso, escrito pelo diretor em parceria com Vera Pedroso, faz a radiografia de uma derrota, absorvida intensamente, com sofreguidão, pelo jornalista Marcelo (Oduvaldo Viana Filho), identificado com os anseios e promessas de mudança varridos da cena pela ruptura institucional. A tensão e perplexidade do personagem são comunicadas pelos diálogos, pela câmera nervosa e ágil — operada manualmente — e por significativo e enraizado conjunto de composições musicais. Nem as idealizações do amor se tornam exequíveis num "tempo de guerra" e "sem sol". A apreciação a seguir é de 1993.







O desafio

Direção:
Paulo César Saraceni
Produção:
Paulo César Saraceni, Sergio Saraceni
Sant'Anna Produtora Brasileira de Filmes Ltda., Produções Cinematográficas Imago, Mapa Films
Brasil — 1965
Elenco:
Isabella, Oduvaldo Viana Filho, Sérgio Brito, Luiz Linhares, Joel Barcelos, Maria Bethânia, Zé Keti, Hugo Carvana, Gianina Singulani, Marilu Fiorani, Renato Graça Couto Filho, João do Vale, Nara Leão, Elis Regina, Gianina Singulani.



O diretor Paulo César Saraceni (1933-2012)



O título originalmente cogitado, No Brasil depois de abril, cedeu ao mais sintético e objetivo O desafio. É o segundo longa e quinta realização de Paulo César Saraceni, considerando-se na contagem o curta Caminhos (1957) — provavelmente perdido. A seguir vieram o documentário curto Arraial do cabo (1960), o longa Porto das Caixas (1962) e o média Integração racial (1964).


O desafio honra o nome. É um feito! Desafiou o momento, o espírito, a perplexidade e as próprias convenções do fazer cinema no Brasil. Em tudo é transgressor, como poucos títulos puderam ser. É marcadamente contemporâneo do início da ressaca política provocada por um desmoronamento: o golpe de Estado civil-militar de 1964. A intervenção liquidou os avanços democráticos e lançou o país em mais de duas décadas de violência policial e institucional. Ceifou física e politicamente três gerações. O protagonista Marcelo (Viana Filho), atordoado pelos acontecimentos, assemelha-se ao caminhante que cambaleia sem saber como avançar. Tenta tomar pé da situação. Mas a cabeça gira. Questiona a todo momento, como se perguntasse, à moda de Lênin: "O que fazer?". É um dos mais ousados e corajosos filmes brasileiros.


Marcelo, interpretado por Oduvaldo Vianna Filho


Dentre as realizações do Cinema Novo, O desafio se ajusta plenamente às propostas do movimento, principalmente ao lema "Uma câmera na mão e uma ideia na cabeça". Foi filmado em praticamente duas semanas, em maio de 1965, com equipe reduzida ao essencial — poucos atores e recursos cenográficos fornecidos pelos intérpretes, diretor e amigos. A câmera — sempre operada manualmente por Dib Lutfi e Guido Cosulich — acompanha a tudo nervosa e ágil. Não está reduzida à objetiva que apenas enquadra, observa e acompanha os intérpretes. É elemento constituinte da dramaturgia ao evoluir por ambientes diversos, explorados com permanente inquietação. Age cirurgicamente na exposição de nervos e tecidos, sem comiseração.



Acima e abaixo: a ressaca política repercute no relacionamento afetivo de Ada (Isabella) e Marcelo (Oduvaldo Viana Filho)


Depois de concluído, demorou a estrear comercialmente. Por razões óbvias, ficou quase nove meses retido no Departamento de Censura da Polícia Federal. Foi liberado somente em abril de 1966. O Desafio não se vale de subterfúgios. Informa claramente: houve um golpe de Estado; o país respira atmosfera banhada na incerteza quanto à legalidade institucional, principalmente com respeito às liberdades e garantias individuais. Os diálogos aludem às prisões arbitrárias, aos interrogatórios sem fim de suspeitos de subversão, empregos perdidos por motivos políticos e à situação de gente obrigada ao exílio.


Enquanto aguardava salvo conduto para exibição em escala ampliada, O desafio pôde ser visto no espaço restrito dos festivais nacionais. Saraceni revelou destemor ao inscrevê-lo, apesar das dificuldades, no Primeiro Festival Internacional do Filme (maio de 1965) sediado no Rio de Janeiro e patrocinado pelo Governador Carlos Lacerda — liderança civil do golpe — e sob Presidência de Honra do Marechal Humberto de Alencar Castelo Branco — mandatário do novo regime. Não foi, evidentemente, selecionado para a mostra competitiva do certame. Mas teve vez nas sessões paralelas do finado Cine Alaska, Copacabana. A sala, lotada e tensa, contava com a presença ilustre e artisticamente marcante dos italianos Roberto Rossellini e Marco Bellochio. A eles Saraceni saiu abraçado e consagrado ao encerramento da exibição coroada de muitos aplausos. De cara, nesta primeira apresentação, O desafio fez jus ao prêmio Torre Nilsson da revista italiana Cinema Nuovo — fato solenemente ignorado pela organização do Festival. Logo chegaram convites para apresentações no exterior[1].


Em novembro de 1965, Paulo Emílio Sales Gomes — responsável pelos mais relevantes esforços para liberar o filme junto à Censura — consegue permissão especial do General Riograndino Kruel para exibi-lo no Festival de Brasília[2]. Considera fundamental a presença do diretor ao evento, inclusive de representantes do Cinema Novo a ele associados na distribuidora Difilm — atual Mapa Filmes, dirigida por Zelito Viana. As incertezas decorrentes da elevação da tensão política provocam um racha no grupo[3]. Glauber Rocha alegou que não iria, pois tinha Terra em transe para filmar e, além do mais, não queria ser preso. Exaltado, chamou Saraceni de irresponsável por ter feito um filme "provocador e marginal". Arrependeu-se em seguida[4]. O dado irônico repercute durante o festival. Um telefonema de David Neves ao diretor o informa da prisão, no Rio de Janeiro, na Escadaria da Glória — onde se passa a última cena de O desafio —, de Glauber junto com o diretor de fotografia Mario Carneiro, o cineasta Joaquim Pedro de Andrade, Flávio Rangel, Paulo Francis, Carlos Heitor Cony, Jayme Rodrigues e Antônio Callado — os "Oito da Glória" — em ato contra o regime militar[5]. A apresentação no Festival de Brasília tem sessão lotada. Parte do público se acomoda no chão ou fica de pé. O clima é tenso. Transcorridos alguns minutos do início, os militares começam a abandonar a sala[6].


Nada da Censura decidir. Os defensores da realização se mobilizam pela imprensa. Alex Viany, Paulo Emílio Sales Gomes, Eduardo Escorel, Rogério Sganzerla e Francisco de Almeida Sales publicam apreciações elogiosas, na contramão dos cronistas mais conservadores. Em geral, destacam o caráter inovador do feito de Saraceni, em forma e conteúdo. Relevam a ambientação essencialmente urbana, fincada nos anseios e contradições dos setores médios. Estes não surgem quais caricaturas ou abstrações. São representados por gente viva, real, antenada à ordem do dia e às questões mais prementes acerca dos compromissos individuais e coletivos. Contradições e incertezas pontuam os diálogos. As falas não decorrem de divagações arbitrárias e inoportunas. São reforçadas por teorias psicológicas, econômicas, políticas, históricas, amorosas, psicanalíticas e revolucionárias.


Ada (Isabella)

  
A liberação acontece sem prejuízos para a imagem. Ordenam-se poucos cortes no som[7]. Após tanta espera pelo pior, os danos foram mínimos. Meses antes, fora interditado o cartaz concebido por Rogério Duarte. Ilustravam a peça botas militares passando sobre os protagonistas[8]. O pôster substituto, nas cores principais da bandeira brasileira, destaca a sorridente Ada (Isabela) no quadrado amarelo inferiormente posicionado. O restante, em verde, apresenta dados da produção, elenco e direção.


A esta altura O desafio repercute amplamente no exterior. É convidado para mostras e festivais na Europa. Internamente foi mal compreendido. Com as honrosas exceções de sempre, amealhou a indiferença; quando muito, o desdém. A Censura e o Ministério das Relações Exteriores permitem a exibição internacional. Em Cannes, ganha os prêmios da Crítica e dos Historiadores do Cinema. Recebe temporada na Cinemateca Francesa, graças aos esforços do curador Henri Langlois. Tem frutífera temporada na Cinemateca de Lausanne, Suiça[9]. É convidado de honra do Festival de Berlim e recebe resenhas elogiosas de Robert Benayoun para a Positif, matéria no Le Monde e artigo de Jean Collet para a Film Nouveaux[10]. Jean-Luc Godard o elogia como "filme político exemplar"[11]. O distribuidor aliado do Cinema Novo, Claude Antoine, lança-o comercialmente no mercado europeu. A iniciativa rende dividendos ao diretor, segundo suas próprias palavras[12].


No Brasil, apesar de fracassar no grande circuito, torna-se referência. Divide o foco das atenções do Cinema Novo. Ganham centralidade as questões voltadas à intelectualidade de classe média que pensa o país e almeja transformá-lo. Antes, predominavam imagens do Brasil profundo vislumbrado pelo morro e sertão. Miséria, desemprego, menor abandonado, analfabetismo, seca, fome e misticismo sertanejo agora dividem espaço com o país urbano das políticas partidária, sindical, universitária, fabril e redações de periódicos. Logo virão Terra em transe (1967), de Glauber Rocha; Jardim de guerra (1970), de Neville de Almeida; Vida provisória (1968), de Maurício Gomes Leite; Fome de amor (1968), de Nelson Pereira dos Santos; A grande cidade (1966) e Os herdeiros (1970), de Carlos Diegues; Cara a cara (1967), de Júlio Bressane; O bravo guerreiro (1968), de Gustavo Dahl; São Paulo S. A. (1965), de Luís Sérgio Person; O Bandido da Luz Vermelha (1968), de Rogério Sganzerla etc. São filmes que pensam o país e tentam descortiná-lo a partir da perspectiva de uma suposta modernidade urbana. Buscam apreender com mais nitidez a dinâmica contemporânea de uma formação social efervescente, em seus avanços e retrocessos. Além de fazer o balanço do momento — a história imediata —, O desafio alimenta o germe de terrível premonição. O "tempo de guerra" da canção ilustrativa da perplexidade do personagem vivido por Oduvaldo Vianna Filho prevê o acirramento das contradições, tanto no seio das forças que se lançaram ao golpe como dos movimentos que lhe levantam oposição, com suas funestas consequências. Tempos mais duros viriam. Em 13 de dezembro de 1968 o Ato Institucional número 5 (AI5) liquida de vez as aparências democráticas e constitucionais do novo regime.


Marcelo (Oduvaldo Vianna Filho) e Ada (Isabella)


O desafio radiografa uma derrota política alimentada por perplexidade e inação. Trata de situação que avança do âmbito macro às relações afetivas. Passaram-se poucos meses do golpe de Estado de 1964. As promessas democráticas dos anos Jango se esfacelaram; junto a elas as esperanças dos avanços coletivos, da participação compromissada e ativa, cidadã, nos projetos de mudança de um país que parecia ir ao encontro de seus históricos anseios de justiça, distribuição e igualdade. Agora, vive-se a incerteza da intervenção que liquidou ilusões. Tempo de ressaca. Paulo César Saraceni amarga esse instante de indefinição. Abandona o projeto de filmar A Fera da Penha. Junta-se a Vera Pedroso e com alguma contribuição do marido desta, Luciano Martins, escreve o roteiro. Impossível haver peça mais afinada ao período retratado.


A crise política abate em cheio o jornalista Marcelo. Perturba irreversivelmente a relação tão promissora com a amante Ada, burguesa insatisfeita, esposa do industrial Mario (Brito), partidário da ruptura institucional. Os cenários pelos quais os protagonistas se posicionam ao contexto de tensão e incerteza são ilustrados por símbolos os mais diversos do tempo presente: literários, gráficos, musicais e cinematográficos. A câmera explora com ênfase livros de John Gerassi (A invasão da América Latina), Clarice Lispector, Jean-Paul Sartre, exemplares dos Cahiers du Cinéma, recortes de jornais na cobertura de fatos nacionais e internacionais, além de posters, reprodução de Guernica, de Picasso, o cartaz de Deus e o diabo na terra do sol (1964), de Glauber Rocha. Deste filme, a Bachiana número 5, de Villa-Lobos, comenta entre a melancolia e a paixão uma sequência de amor entre Marcelo e Ada. Há acima de tudo a rica trilha musical: composições aguerridas a denunciar amarguras cotidianas e históricas; misérias e vilanias — o melhor da música popular brasileira do período. As letras convocam, direta ou indiretamente, ao trabalho de transformações urgentes por fazer. Escrito por Armando Costa, Oduvaldo Viana Filho e Paulo Pontes, o show Opinião, dirigido por Augusto Boal, protagonizado por Zé Keti, João do Vale e Maria Bethânia (substituiu Nara Leão) está em alta. Marcelo, na plateia, remói ilusões entre o êxtase e a frustração na audição de canções que tratam das agruras de trabalhadores, retirantes e favelados. A interpretação de Bethânia para Carcará, de João do Vale, é emblemática. Com o rosto destacado em plano médio, brada com força os versos, como se enviasse um recado. No início do terço final do filme, o angustiado Marcelo perambula pela feira ao som de Arrastão, de Edu Lobo e Vinícius de Moraes, pela voz de Elis Regina. Mas é Eu vivo num tempo de guerra[13], de Edu Lobo e Gianfrancesco Guarnieri — letra calcada no poema Aos que vierem depois de nós, de Bertolt Brecht, e composta para a peça Arena conta Zumbi, de Guarnieri e Augusto Boal — que fornece a tônica aos anseios e estado de espírito do personagem de Viana Filho.


Ada (Isabella) e Marcelo (Oduvaldo Viana Filho)
"A porra deste golpe militar é que impede que a gente possa estar do mesmo lado"
  

O desafio expõe nervos e tensão por uma câmera inquieta, mas também pelos diálogos. É um dos filmes mais dialogados do cinema brasileiro. Os personagens se expressam verbalmente a todo momento. Mas canalizar a palavra é unicamente o que podem fazer. Falar revela o quanto estão atônitos e perdidos afetiva e politicamente; expõe a falta de sentido do mundo próximo que os rodeia.


Marcelo é como um bólido girando em torno de si mesmo enquanto busca significados e lições a tirar da situação. Saber o que fazer e aquietar a alma não soa possível. Enquanto não se resolve, suspende todos os projetos devido à falta de sentido do presente. Carlos (Barcelos), mais realista, coautor de um livro que escreveriam, opõe-se ao marasmo do amigo e colega. Pode-se não vencer, mas é fundamental sobreviver, mesmo em contextos desfavoráveis ao espírito, alega com base em Otto Maria Carpeaux. Em tempos como agora impõe-se "O décimo primeiro mandamento: Não se deixar corromper e não ter medo". Quanto ao mais, é viver e aprender; extrair do cotidiano as suas devidas lições e tentar seguir em frente. “É o tempo da conscientização. Nós ainda vamos agradecer a este tempo", acentua.


Marcelo (Oduvaldo Viana Filho) e Carlos (Joel Barcelos)


Marcelo não aceita o realismo otimista de Carlos. Parece-lhe conivência à nova ordem. Também refuta o cínico e debochado niilismo de Nestor (Linhares). Este simplesmente aceitou o sentido trágico da vida e se adequou às circunstâncias. É a saída, afirma. É o que todos deveriam fazer — pondera —, como se fossem abstrações plenamente ajustáveis aos mais diversos imperativos. Por pouco Marcelo não é enredado numa artimanha, ao aceitar convite para pernoitar na casa do colega: um expediente amoroso com a esposa (Singulani) do anfitrião enquanto este fingia sonolência devido à bebida. O jogo é recusado. O protagonista permanece fiel aos anseios de um mundo pleno de sentido, sem o predomínio da falsidade no seio das relações. Para isso acontecer — segundo a canção —, sabe: "...É preciso vencer/...é preciso lutar". Talvez seja "... Preciso matar", pois os tempos não são favoráveis a nenhuma forma concreta e plena de existir. A radicalização da luta contra a nova ordem desponta na lúcida e certeira previsão de O desafio.


Com Ada as circunstâncias impõem a mais sofrida ruptura. Os ideais do amor e da revolução estão desencontrados. Os anseios de participar ativamente da existência coletiva da parte do engajado Marcelo não encontram correspondência nos simples desejos de estabilidade da vida a dois concebidos pela amante. Para ele, é impossível separar a felicidade do indivíduo dos projetos de transformação do país. Amar não significa somente estar em sintonia com o parceiro. Ambos necessitam, também, de correspondência aos anseios coletivos. Amar se torna, pois, ato de responsabilidade, tanto existencial quanto política. Sem a adesão de Ada aos planos maiores de Marcelo a relação fracassará. Ela acredita que tudo depende do indivíduo e suas escolhas, ao passo que o companheiro está atento ao contexto das relações ampliadas nas quais o EU se insere de forma responsável. Ada não compreende tanta inquietação. Mesmo assim, recebe um ultimato: deve se decidir; abandonar a vida confortável, mas vazia e desprovida de sentido do casamento com Mario; deixar de encarar a felicidade a partir de uma perspectiva individualista; unir-se integralmente ao amante nos seus sonhos coletivos. Em meio às discussões, praticamente negociações, ouve-se em alto e bom som: "A porra deste golpe militar é que impede que a gente possa estar do mesmo lado".


Ada (Isabella) e Marcelo (Oduvaldo Vianna Filho)


Um dos últimos atos dos dois é a visita às ruínas do casarão que serviu de pensão e foi incendiado pelo desespero de um poeta sem meios para pagar a estadia. Antes, fervilhava em vida. Agora, marcas escuras estão gravadas nas paredes que testemunharam sonhos de felicidade. Em alguns cômodos o teto desabou. No quarto onde o incêndio começou, Marcelo encontra volume chamuscado de Invenção de Orfeu, longo poema subjetivo de Jorge de Lima, dividido em 10 cantos. Os versos, livres ou rimados, compõem uma epopeia. O lirismo se casa à crua visceralidade; o profano se une ao sagrado; a aventura humana se projeta entre a placidez e o desespero de idealizado estado de plenitude ao qual se chega por passagens infernais e paradisíacas. A obra, familiar aos amantes, acirra o desencontro de ambos. Nela, Marcelo está inteiramente representado, justamente naquela casa reduzida a cinzas e escombros. A metáfora do Brasil do momento está posta. Segundo palavras do diretor, também se faz a correspondência com o incêndio criminoso que destruiu a sede da União Nacional dos Estudantes nos dias seguintes ao golpe de Estado.


A partir daí Ada deve se decidir. Procura o marido na fábrica. Visita a linha de montagem onde os operários cumprem dura jornada de trabalho. O barulho das máquinas a atordoa. Parece sentir o peso da estrutura desabando sobre seu corpo. Os trabalhadores se confundem às engrenagens. Apavorada, corre para fora. A seguir, tenta se misturar aos milhares de homens e mulheres à saída do expediente. Deles depende o seu padrão de vida. Não consegue encará-los. Evita individualizá-los. Tem diante de si uma massa informe e sem rosto. Certamente, toma consciência dos problemas de maior amplitude que afligem Marcelo e se percebe sem forças para embarcar em outra e desconhecida proposta de vida, que parece se afigurar quixotesca e inútil contra o poder de uma orgânica e impenetrável estrutural social. Sucumbe aos pesos da impotência, insignificância e condição de classe. O rompimento está materializado. Marcelo, confiante, aguardou por ela, inutilmente. O pacto é impossível. O tempo é de guerra e sem sol. Não há esperanças imediatas. Será preciso lutar.


A descida final de Marcelo (Oduvaldo Viana Filho)
"É um tempo de guerra/É um tempo sem sol"


O dia amanhece. O protagonista, frustrado, deixa a casa de Nestor. Desce rua praticamente vazia, prolongada por imensa escadaria. A canção de Edu Lobo e Gianfrancesco Guarnieri o acompanha em seus passos incertos. Encostada a um degrau uma criança pobre se aproxima e lhe estende a mão. Marcelo olha para ela, compungido, entre a dor e o horror. Retoma a descida, alternando passos lentos e acelerados. Às vezes estanca. Os olhos de Ada surgem num relance enquanto divisa o horizonte incerto. Encerra o trecho e desaparece; a canção também chega ao fim: "Se você chegar a ver/essa terra da amizade/onde o homem ajuda o homem/pense em nós só com bondade!/É um tempo de guerra/é um tempo sem sol/É um tempo de guerra/é um tempo sem sol/Essa terra eu não vou ver!".


Final mais premonitório, impossível, ainda mais se visto pelos que acompanharam de perto os percalços da trajetória brasileira nos 30 anos seguintes à realização. A arquitetura de O desafio permanece intacta, ousada, instigante, mesmo em sua concepção — enganadoramente — simples. O cinéfilo atento — também movido pelos imperativos do coração — deve se preparar para uma cena comovente, de alto impacto, em forma de homenagem referencial na relação do sertão ao "mar": Ada em primeiro plano, posicionada à esquerda do quadro, tem do outro lado o cartaz de Deus e o diabo na terra do sol enquanto se ouvem acordes da Bachiana número 5.


Bastidores da filmagem: com a objetiva na mão, o operador de câmera e diretor de fotografia Dib Lutfi se prepara para filmar Isabella - intérprete de Ada - em um dos mais belos e significativos planos do cinema brasileiro


Operadores de câmara e direção de fotografia (preto e branco): Dib Lutfi, Guido Cosulich. Imagens do Show Opinião: José Medeiros e Dib Lutfi. Sincronia de som: Eduardo Escorel. Som: Atlântida. Laboratório: Líder. Assistente de direção: Paulo Bastos Martins. Montagem: Ismar Porto, Miguel Borges. Negativo: Paula Cracel. Roteiro: Paulo César Saraceni, Vera Pedroso com base em história de Oduvaldo Vianna Filho. Músicas: É de manhã (Caetano Veloso), Arrastão (Vinícius de Moraes, Edu Lobo), com Elis Regina, Sonata K378 (Mozart), Bachianas n. 5 (Villa-Lobos), Minha desventura (Vinícius de Moraes, Carlos Lira), Notícia de jornal (Zé Keti), com Zé Keti, Carcará (João do Vale, José Cândido), com Maria Bethânia, Eu vivo num tempo de guerra (Edu Lobo, Gianfrancesco Guarnieri). Produção associada: Mario Fiorani. Decoração: José Henrique Bello. Assistente de câmera: José Medeiros. Joias de Isabella: Nathan. Penteados: Rosinha. Calçados: Fernando Bellini. Maquiagem: Germaine Monteil. Tecidos: Nuance. Tempo de exibição: 94 minutos.


(José Eugenio Guimarães, 1993)



[1] Cf. SARACENI, Paulo César. Por dentro do Cinema Novo: minha viagem. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993. p. 195.
[2] Ibidem. p. 202.
[3] Ibidem. p. 196.
[4] Ibidem. p. 201.
[5] Ibidem. p. 201 e 202.
[6] Ibidem. p. 202.
[7] Os cortes no som atingiram as falas "É bom mergulhar na merda", "Vá à merda", "Merda", "Antes do golpe era assim" e"Agora mais do que nunca, acredito não podermos ser livres'".
[8] Cf. SARACENI, Paulo César. Op. cit. p. 198.
[9] Cf. Ibidem. p. 213.
[10] Cf. Ibidem.
[11] Cf.Ibidem.
[12] Cf. Ibidem. p. 212.
[13] " Eu vivo num tempo de guerra/Eu vivo num tempo sem sol/Só quem não sabe das coisas/É um homem capaz de rir/Ah, triste tempo presente/Em que falar de amor, de flor,/é esquecer que tanta gente/está sofrendo tanta dor/Todo mundo me diz/que eu devo comer e beber./Mas como é que eu posso comer?/Mas como é que eu posso beber?/Se eu sei que eu to tirando/o que eu vou comer e beber/de um irmão que tá com fome,/de um irmão que tá com sede./De um irmão./Mas mesmo assim,/eu como e bebo./Mas mesmo assim,/essa é a verdade!/Dizem crenças antigas/que viver não é lutar./Que sábio é o que consegue/ao mal com o bem pagar./Quem esquece a própria vontade/quem aceita não ter o seu desejo/é tido por todos um sábio/é isso que eu sempre vejo/é a isso que eu digo NÃO!/Eu sei que é preciso vencer/eu sei que é preciso brigar/eu sei que é preciso morrer/eu sei que é preciso matar!/É um tempo de guerra/é um tempo sem sol/É um tempo de guerra/é um tempo sem sol/sem sol, sem sol, tem dó/sem sol, sem sol, tem dó/Eu vivi na cidade no tempo da desordem/Eu vivi no meio da gente minha no tempo da revolta/Assim vivi os tempos que me deram pra viver/É um tempo de guerra/é um tempo sem sol/É um tempo de guerra/é um tempo sem sol/E você que me prossegue/e vai ver feliz a terra/lembre bem do nosso tempo/desse tempo que é de guerra/É um tempo de guerra/é um tempo sem sol/É um tempo de guerra/é um tempo sem sol/Veja bem que preparando/o caminho da amizade/não podemos ser amigos ao mal/ao mal vamos dar maldade!/É um tempo de guerra/é um tempo sem sol/É um tempo de guerra/é um tempo sem sol/Se você chegar a ver/essa terra da amizade/onde o homem ajuda o homem/pense em nós só com bondade!/É um tempo de guerra/é um tempo sem sol/É um tempo de guerra/é um tempo sem sol/Essa terra eu não vou ver!".

4 comentários:

  1. Eugenio,

    A Ada, sua esposa, era uma mulher linda demais! Não a conheci, pois conheço muito pouco da cinematografia do Saraceni e onde ela geralmente aparecia.

    Conheço dele apenas dois trabalhos; Natal da Portela/88 e Porto das Caixas/62, uma fita esta até muito fraquinha. Entretanto, lhe dou o desconto dela ter sido feita há mais de 50 anos, período onde o cinema brasileiro se segurava em pernas muito bambas em todos os seus parâmetros.

    Andei lendo algo sobre ele na Internet, pois não gosto de falar de alguém sem saber qualquer parte do núcleo do mesmo.
    E tive ciência de todos os seus trabalhos, assim como de seu reconhecimento como um diretor ativo e de ideias livres e progressistas, motivações que não vieram a lhe arrecadar bons lucros em futuro.

    Gostaria de conhecer O Desafio/65, fita que deve ter sido a seguinte a Porto das Caixas/62, já que sua cinematografia não era um seguimento de trabalhos e sim entrecortada de períodos alongados.

    jurandir_lima@bol.com.br

    .





    Não vi O Desafio/65, e também conheço quase nada da tábua de trabalhos do diretor.

    Dele vi apenas

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    1. Jurandir,

      Gosto muito de PORTO DAS CAIXAS. Estou para atualizar - uma revisão do português - a resenha que escrevi para o filme em 1977. É uma das melhores adaptações de obra do denso romancista Lúcio Cardoso.

      Faz pouco tempo que revi O DESAFIO. Procurei fazer isso logo após a publicação em tela. É filme que me emociona demais, DEMAIS MESMO, como se diz em Minas. Saraceni sempre foi um cineasta consciente e seguro de si, uma carreira singular no nosso cinema.

      Espero que os trabalhos de conservação/preservação de seus filmes já estejam adiantados. Até há pouco tempo, o importante A CASA ASSASSINADA - cuja resenha já foi aqui publicada - estava com a integridade em risco, ameaçado de se transformar em vinagre, como se costuma dizer acerca do perecimento dos filmes.

      Abraços.

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  2. LLevar a la pantalla la realidad que un pueblo está viviendo no es algo que todos los cineastas deseen hacer,hoy en día son pocos los que lo hacen ,la mayoría prefieren el éxito en la taquilla,por ello,estos filmes son muy valiosos y dignos de ver y difundir,que el pueblo no se sienta solo...Estupenda reseña cielo,gracias por compartir,te mando besitos y un gran abrazo...!!! :)

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    1. Você tem toda a razão, Maria Del Socorro. Foi-se o tempo das películas mais comprometidas socialmente. Da mesma forma como o cinema de tendência mais humanista parece ter desaparecido por completo. O filme que você acaba de comentar é uma realização que calou fundo entre os espectadores brasileiros que se dispuseram a conhecê-lo. Poucos filmes aqui realizados foram tão incisivos e cortantes como O DESAFIO.

      Muchas gracias por sua apreciação, querida. Beijos, abraços e saludos.

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