domingo, 11 de janeiro de 2015

OS MINEIROS DE BLOODY HARLAN OU OS ESTADOS UNIDOS ESCUROS COMO CALABOUÇO

Contemporâneo de Corações e mentes (Hearts and minds, 1974), de Peter Davis — e tão vigoroso e explosivo na denúncia como esse filme —, é o documentário de Barbara Kopple, Harlan County: tragédia americana (Harlan County U.S.A.), de 1976. Causou sensação no Festival de Cinema de Nova York e foi premiado com o Oscar de Melhor Documentário Longo. Conheço muitas realizações do gênero, originalmente produzidas para o cinema. Mas a obra de Barbara Kopple está, sem dúvida, entre as melhores. Acompanha, em formato de crônica, a luta dos mineiros da Brookside Mine no Condado de Harlan — bastião de miséria e exploração típicas do terceiro mundo, encravado nos liberais, igualitários e democráticos EUA — pela conquista dos mais básicos direitos trabalhistas. Apesar das ameaças sofridas, diretora e equipe finalizaram um produto de comovente autenticidade, estruturado em linguagem livre e pouco comum aos documentários engajados. Nem a precária avaliação política dos mineiros e da realizadora sobre os fatos em tela chega a comprometer a força do trabalho. A apreciação a seguir foi escrita em 1979.







Harlan County: tragédia americana
Harlan County U.S.A.

Direção:
Barbara Kopple
Produção:
Barbara Kopple
Cabin Creek Film
EUA — 1976
Elenco:
Vivendo seus próprios papéis — Norman Yarborough, Houston Elmore, Phil Sparks, John Corcoran, John O'Leary, Donald Rasmussen, Hawley Wells Jr., Tom Williams, Chip Yablonski, Ken Yablonski, Logan Patterson, Harry Patrick, Mike Trbovich, Bernie Aronson, Guy Farmer, Nimrod Workman, Bessie Lou Cornett, Jerry Wynn, Bob Davis, Lois Scott, Joe Dougher, Jerry Johnson, Sudie Crusenberry, Dorothy Johnson, Betty Eldridge, Ron Curtis, Bill Doan, Phyllis Boyens, Florence Reece, E. B. Allen, Jim Thomas, Mickey Messer, Nanny Rainey, Tom Pysell, Tommy Fergerson, Bill Worthington, Crystal Fergerson, Barry Speilberg, Polly Jones, Diane Jones, Otis King, Mary Lou Fergerson, W. A. 'Tony' Boyle, Basil Collins, Carl Horn, Lawrence Jones, John L. Lewis, Arnold Miller, William Simon, Richard Trumka, Billy G. Williams, Joseph Yablonski, Barbara Kopple.



Barbara Kopple, realizadora de Harlan County: tragédia americana


O documentário Harlan County U.S.A. questiona duramente os mitos da formação dos Estados Unidos: liberdade, igualdade perante a lei, democracia e terra das oportunidades. Apresenta, em forma de crônica, a campanha em prol do reconhecimento de direitos essenciais desencadeada pelos mineiros de carvão da Brookside Mine, Condado de Harlan, sudeste do estado do Kentucky. O empreendimento é possessão da Eastover Mining Company, subsidiária da Duke Power. Os trabalhadores tiveram, ao longo de muitos anos, negadas todas as prerrogativas básicas a um regime capitalista e democrático que se preze. Não eram alcançados pela assistência médica; sequer lhes era permitida a organização sindical. Tais condições permaneceram inalteradas por 40 anos, apesar de toda a mobilização desse setor do proletariado estadunidense durante o período. O passado dos mineiros de Harlan County é ilustrado por lutas e reivindicações em prol do cumprimento dos ordenamentos trabalhistas mais elementares.


O documentário  acompanha treze meses de greve dos mineiros de carvão da Brookside Mine

Harlan County: trabalho e vida em condições de extrema miserabilidade por mais de 40 anos


O foco principal do filme de Barbara Kopple é a greve de 13 meses deflagrada pelos mineiros entre 1973 e 1974. A origem do movimento é a rebelião que explodiu em agosto de 1972. Mas o espectador, particularmente o não estadunidense — pouco familiarizado com as distantes questões sindicais da terra do Tio Sam —, não é atirado de supetão no turbilhão dos dramáticos acontecimentos. Uma retrospectiva sobre as condições de vida e trabalho em Harlan County, desde os anos 30, ajuda-o na compreensão dos fatos. Desde essa época o lugar ficou afamado como “condado sangrento” ou Bloody Harlan, por causa da primeira tentativa de greve, brutalmente sufocada, quando até os encapuzados da Ku-Klux-Klan se juntaram aos algozes habituais: patrões, capatazes e polícia.


Mineiros da Brookside Mine, Condado de Harlan, Kentucky: 40 anos de luta pela conquista dos mais básicos direitos trabalhistas

  
Cineasta radicada em Nova York, Barbara Kopple não teve, de início, a intenção de realizar um filme. Quando se dirigiu ao Condado de Harlan o fez na condição de participante da campanha em prol da democratização do Sindicato dos Mineiros, movimento deflagrado pelo assassinato do líder trabalhista Yablonski, fulminado ao lado da mulher e filha, acontecimento que ganhou ampla repercussão. O projeto de um filme sobre Harlan County somente tomou forma depois que a diretora sentiu a temperatura explosiva do lugar. O que seria uma rápida visita se converteu em permanência de quatro anos na localidade, período no qual conviveu em proximidade aos mineiros, testemunhando-lhes os anseios sentidos nos círculos familiares e profissionais. Em piquetes, reuniões, assembleias, correrias, ameaças de policiais e fura-greves o filme foi nascendo. A equipe correu graves riscos, mas contou sempre com a proteção dos mineiros. Das câmeras saíram mais de 50 horas de imagens, reduzidas a 103 minutos na montagem final. Os resultados compensaram: Harlan County: tragédia americana conquistou o Oscar de Melhor Documentário de Longa Metragem de 1977 e causou furor quando exibido no Festival de Cinema de Nova York em 1976.


O projeto de um filme sobre Harlan County só tomou forma após Barbara Kopple sentir a temperatura explosiva do lugar


As lentes de Barbara Kopple captam a resistência dos mineiros a toda uma ignominiosa jornada de intimidação que incluía atentados, assassinatos de lideranças, ameaças, intrigas, espancamentos e invasões de domicílio. Ao fim do processo os trabalhadores obtiveram direito de sindicalização e filiação à United Mine Workers of America. Essa conquista é registrada passo a passo pela realização.


Os mineiros da Brookside Mine diante da intimidação e violência da polícia

Os próprios mineiros levantavam o ânimo para a luta


Harlan County U.S.A. custou a bagatela de 300 mil dólares, quantia levantada junto a igrejas e entidades de apoio aos movimentos civis. Originalmente foi concebido em 16 mm e, posteriormente, ampliado para 35 mm. É estruturado como um diário de intensa dramaticidade. O relato é comovente. Surpreende pela linguagem livre da concepção, uma surpresa em se tratando de documentário engajado. Desde as primeiras imagens a produção toma partido ao lado dos trabalhadores sem deixar que modelos ideológicos ditem os rumos da narrativa. A própria visão da direção não opta por uma postura revolucionária. Isso foi bom, pois dogmatismos e paternalismos, tão comuns nessas ocasiões, ficaram de fora. Por outro lado, tanto a cineasta como os mineiros não tiveram a intenção  como se percebe claramente  de promover qualquer mudança radical no sistema. A greve visava apenas a correção de uma injustiça e o filme registra as etapas percorridas para se atingir esse objetivo. Porém, evidencia-se uma precária visão política sobre os fatos mostrados. Ao tomar a defesa dos trabalhadores, Barbara Kopple, equivocadamente, elege como “judas” do movimento os fura-greves e colaboracionistas declarados e envergonhados do setor patronal, todos igualmente explorados mas ignorantes das próprias condições em que viviam. É uma saída, pode-se dizer, mesquinha, mas tipicamente americana: centra o foco das explicações sobre as escolhas individuais e deixa de lado as contradições do sistema que gera, realimenta e perpetua as injustiças.


Apesar de se posicionar a favor dos trabalhadores, Barbara Kopple deu voz a todos os lados do movimento


Porém, é sempre louvável ressaltar a liberdade da diretora e sua tendência de mostrar todas as facetas do movimento. Operários, patrões, líderes sindicais, policiais, fura-greves e políticos emitem opiniões que auxiliam o espectador a conceber percepção mais ampla dos acontecimentos e, mesmo, a tomar posição a respeito dessas ações. 


Solidariedade: mineiros da Virginia marcham em apoio ao colegas do Kentucky


A trilha sonora é um dos trunfos da realização. Reúne uma coleção de composições significativas que cantam a vida dos operários das minas de carvão, como: Black lung (pulmão preto), Cold blooged murder (assassinato a sangue frio) e Dark as a dungeon (escuro como um calabouço).






Direção de fotografia (cores): Hart Perry, Kevin Keating. Fotografia adicional: Tom Hurwitz, Flip McCarthy, Phil Parmet. Gravação de som: Barbara Kopple. Som adicional: Tim Colman, Bob Gates, John Watz. Mixagem da regravação de som: Lee Dichter. Edição de som: Joshua Waletzky. Música: Hazel Dickens, Merle Travis. Assistentes da edição de som: Rhetta Barron, Judy Rabinovitz, Helene Susman. Canções: Nimrod Workman, Sarah Cunnings, Florence Reese, David Morris, Country Cookin, Roscoe Holcomb, Wade Ward, Bill Worthington. Montagem: Nancy Baker, Mirra Bank, Lora Hays, Mary Lampson, Lawrence Mischel, Sue Mischel. Gerente de produção pela Miller-Boyle Campaign: Marc N. Weiss. Assistentes de câmera: Dick Donovan, Michael Hamilton, Anne Lewis II, George Liebert, Alex Lukman, Shane Zarintash. Músico: David Morris. Créditos: Jean Bertl, Jose Gallardo. Assistentes gerais: Mariann Dusseldorp, Barbara Johnson, Teri Siegel. Associado à direção: Anne Lewis II. Agradecimentos a: Bernie Aronson, Ting Barrow, Robert Boehm, Bernie Chertok, David Chertok, Heleny Cook, Alida Davison, Suzy Elmiger, Leon Gast, Robert Gumpert, Carol Guyer, Cynthia Guyer, Barbara Haspiel, Nancy Higgins, Anne Hoblitzelle, Robert Kaylor, Alfred S. Kopple, Majorie Kopple, Peter Kopple, Laura Lesser, Alan Manger, Richard Pearce, Michael Penland, D.A. Pennebaker, Hart Perry, George Pillsbury, Barrie Singer, Marvin Soloway, Bill Susman, Simone Swan, Rip Torn, Merry Weingarten, Moe Weitzman, Myrna Zimmerman. Tempo de exibição: 103 minutos.


(José Eugenio Guimarães, 1979)