domingo, 25 de dezembro de 2016

"GRAND PRIX", DE JOHN FRANKENHEIMER, CAPTA O AUTOMOBILISMO EM TRANSIÇÃO

Um dos meus grandes momentos cinéfilos em tempos de adolescência, aos 14 anos, foi ver Grand prix (Grand prix, 1966) no cinema, em 1970. Se toda realização originalmente cinematográfica só pode ser integralmente apreciada em salas de exibição, isto se torna mais verdadeiro em se tratando do filme de John Frankenheimer. Vê-lo na estreita e banalizadora TV é sacrilégio. Todas as dimensões de um bem cuidado espetáculo sensorial — equilibrado em som, imagens e efeitos — se perdem completamente na telinha doméstica. Afirmo-o de cadeira, desde a desgraçada decisão de revê-lo em 1995, no pequeno formato. Tudo foi para o espaço. Em geral, não me atrai o automobilismo. Grand prix é a exceção, mesmo assim por causa dos aspectos dramáticos e cinematográficos. É cinema-espetáculo em sua melhor acepção. Guardo vivíssimas as lembranças da sessão que me teve presente há 46 anos. Faz parte do melhor momento da trajetória de John Frankenheimer, um valor que logo se perdeu depois de apresentar, em sequência, um lote no mínimo instigante de marcantes realizações: O homem de Alcatraz (The birdman of Alcatraz, 1962), Sob o domínio do mal (The Manchurian candidate, 1962), Sete dias em maio (Seven days in May, 1964), O trem (The train, 1964), O segundo rosto (Seconds, 1966), Grand prix e O homem de Kiev (The fixer, 1969). Além do mais, a realização foi valorizada por uma imprevisibilidade histórica, ao apreender o automobilismo em momento de transição, quando passava a atrair o interesse do grande capital como logo ficaria patente. Os personagens que protagonizam o drama, junto aos maiores ases do volante nos anos 60, podem ser vistos como os últimos exemplares de um período épico, heroico e romântico. A apreciação a seguir, de 1975, foi revista e ampliada 20 anos depois.






Grand prix
Grand prix

Direção:
John Frankenheimer
Produção:
Edward Lewis
Metro-Goldwyn-Mayer, Joel Productions, John Frankenheimer Productions, Cherokee Productions, Douglas & Lewis Productions
EUA — 1966
Elenco:
Yves Montand, Eva Marie Saint, James Garner, Toshiro Mifune, Brian Bedford, Jessica Walter, Antonio Sabato, Françoise Hardy, Adolfo Celi, Claude Dauphin, Enzo Fiermonte, Geneviève Page, Jack Watson, Donald O’Brien, Albert Remy, Bernard Cahier, Alan Fordney, Tommy Franklin, Graham Hill, Phil Hill, Rachel Kempson, Anthony Marsh, Ralph Michael, Jean Michaud e os não creditados Bruce McLaren, Richie Ginther, Evans Evans, John Bryson, Arthur Howard, Alain Gerard, Tiziano Feroldi, Gilberto Mazzi, Raymond Baxter, Eugenio Dragoni, Maasaki Asukai, Joan Cahier, Coeline Bryson, Anne Schlesser, Lynn Spence, Dennis Hulme, Barry Gill, Geoffrey Charles, Pat Merone, R. Robertson, Louis Chiron, Juan Manuel Fangio, Brian Duffy, Joakin Bonnier, Chris Amon, Lorenzo Bandini, Jean-Pierre Beltoise, Bob Bondurant, Jack Brabham, Ken Costello, Nino Farina, Paul Frère, Dan Gurney, Tony Lanfranchi, Guy Ligier, Michael Parkes, André Pilette, Teddy Pilette, Peter Revson, Jochen Rindt, Jim Russell, Ludovico Scarfiotti, Jo Schlesser, Skip Scott, Jo Siffert, Mike Spence, Salvatore Billa, Jim Clark, Noël Godin.



O diretor John Frankenheimer em 1995, durante a rodagem de Andersonville, produzido para a TV



John Frankenheimer pertence à primeira geração de cineastas estadunidenses egressa da televisão. Começou na telinha como assistente de Sidney Lumet. Depois encenou telepeças para os programas You are there (1954), Danger (1954-1955), Climax! (1955-1956), Playhouse 90 (1955-1960) etc. Já havia realizado dois filmes para a tela grande — No labirinto do vício (The young stranger, 1956) e Juventude selvagem (The young savages, 1961) — quando disse a que veio ao dirigir Burt Lancaster no sóbrio O homem de Alcatraz (The birdman of Alcatraz, 1962). A seguir, praticamente numa só enfiada, brindou o público com trabalhos notáveis nos quais conciliava argúcia, senso de ritmo, domínio da técnica, montagem rápida, intrigas claras, gosto pelo suspense, valorização do roteiro e dos atores: Sob o domínio do mal (The Manchurian candidate, 1962), Sete dias em maio (Seven days in May, 1964), O trem (The train, 1964), O segundo rosto (Seconds, 1966) e O homem de Kiev (The fixer, 1969). Hoje, é um valor decadente, muito distante do talento que surgiu como promessa de renovação do cinema dos Estados Unidos no começo dos anos 60[1]


James Garner interpreta Pete Aron, piloto estadunidense


Frankenheimer estava no auge quando, imediatamente após O segundo rosto e no mesmo ano, fez Grand prix, ainda hoje o mais espetacular e adulto filme sobre corridas de automóveis. A realização une aventura e drama para perscrutar o universo dos pilotos de Fórmula 1. Fascinado pela velocidade, o diretor se cercou do mais moderno aparato de filmagens disponível na época, e dos mais experimentados técnicos para exprimir na tela, com o máximo realismo (dramático, técnico, visual e formal), a sensação de estar a bordo de um bólido disparado a mais de 200 Km/h. Para dar veracidade à ficção contida no roteiro de Robert Alan Arthur, uniu-se a profissionais de verdade do métier: os então famosos pilotos André Pilette, Bob Bondurant, Bruce McLaren, Chris Amon, Dan Gurney, Dennis Hulme, Graham Hill, Guy Ligier, Jack Brabham, Jean-Pierre Beltoise, Jim Russell, Jo Schlesser, Skip Scott, Joachim Rindt, Joakin Bonnier, Joe Siffert, Juan Manuel Fangio, Ken Costello, Ludovico Scarfiotti, Maasaki Asukai, Mike Spence, Nino Farina, Lorenzo Bandini, Paul Frere, Peter Revson, Phil Hill, Richie Ginther, Teddy Pillette e Tony Lanfranchi que exibem toda a perícia de que são capazes em muitas tomadas ainda capazes de suspender o fôlego. Na elaboração de cenas e seqüências contou com a especial consultoria dos ases Joakim Bonnier, Richie Ginther, Phill Hill e Graham Hill. Disputas reais, documentadas durante provas do Grande Prêmio de Fórmula 1 de 1965, fornecem a necessária atmosfera em torno dos dramas vividos pelos quatro automobilistas cujas trajetórias o filme acompanha dentro e fora das pistas: Pete Aron (Garner), americano; Scott Stoddard (Bedford), inglês; Jean-Pierre Sarti (Montand), francês; e Nino Barlini (Sabato), italiano.


Yves Montand como o corredor francês Jean-Pierre Sarti

O piloto italiano Nino Barlini (Antonio Sabato) e Lisa (Françoise Hardy)

Pete Aron (James Garner) e o piloto inglês Scott Stoddard (Brian Bedford)


Stoddard, Sarti, Barlini e Aron arriscam-se nas pistas em meio à lataria, ronco de motores, freadas bruscas, ultrapassagens perigosas, pressões das escuderias e patrocinadores, odores de combustível e lubrificantes, explosões, chamas, sangue e morte. Fora delas desfilam fama e fortuna por espaços glamourosos e refinados; disputam a atenção de fãs e mulheres bonitas. Realidade e mito estão presentes. Mas, atualmente[2], o maior mérito de Grand prix não se deve propriamente às impecáveis qualidades da realização. Resulta de uma imprevisibilidade histórica. Frankenheimer e sua turma provavelmente não sabiam, mas, quando filmavam, estavam apreendendo o automobilismo num instante de transição. Testemunhavam o fim de uma era épica, heróica e romântica, na qual os ases da velocidade também se completavam nos papéis de mecânicos e construtores de máquinas. Eram mistos de amadores e sonhadores movidos por imperativos que, alojados no íntimo de cada um, impulsionava-os a superar limites, na maioria das vezes para a satisfação pessoal e deleite de um círculo muito restrito de pares, conhecidos, fãs e torcedores. Por outro lado, flagra o nascimento de um novo período, marcado de pragmatismo e profissionalismo, comandado pelo capital à frente dos interesses mais imediatos de corporações anônimas e patrocinadores desejosos de vender qualquer tipo de produto. Nesse novo formato do automobilismo o piloto é produzido pela mídia e transformado em mito, praticamente um semideus, para ser consumido indistintamente pelas massas anônimas sedentas de heróis. Mas é, acima de tudo, uma máquina de ganhar e (mais ainda) fazer dinheiro; a peça mais visível de toda uma engrenagem articulada na movimentação do sistema.


Grand prix deve, acima de tudo, ser apreciado em suas proporções originais. Isso equivale a dizer: somente os cinemas podem exibi-lo em toda a plenitude. Se essa verdade é válida para qualquer filme originalmente cinematográfico, serve mais ainda para essa realização de John Frankenheimer. Infelizes aqueles que não tiveram esse privilégio e hoje contam apenas com a quadratura da reduzida e medíocre tela da televisão que o exibe vez ou outra.


Os pilotos reais Graham Hill no papel de Bob Turner e - entre Pete Aron (James Garner) e  Jean-Pierre Sarti (Yves Montand) - Joakin Bonnier 

Pete Aron (James Garner) e Agostini Manetta (Adolfo Celi)


Em 1970, aos 14 anos, assisti a Grand prix como se deve, no cinema. Certo, a humilde sala interiorana da ocasião não possuía instalações para reproduzí-lo na grandiosidade dos formatos em que foi originalmente concebido: Cinerama e Super-Panavision 70mm. Mas à minha frente, ocupando todo o espaço retangular da tela, passava o filme inteirinho. Apesar de reduzido a um CinemaScope convencional, puxava-me para o centro dos acontecimentos. Graças à fotografia de alta resolução de Daniel Lindon, responsável também pela coordenação dos arrojados e ágeis movimentos de câmera, sentia-me lançado e inebriado no meio das pistas, paralelo aos bólidos, quando não instalado ao lado dos pilotos no apertado espaço dos veículos. Essa sensação, tão juvenil, era ampliada pelos efeitos sonoros e edição de som de Gordon Daniels, trabalhando com as gravações coordenadas por Franklin Milton e executadas por Roy Charman e MGM SSD. Os aspectos mirabolantes que restavam eram garantidos pela equipe de montagem supervisionada por Fredric Steinkamp e composta pelos experts Henry Berman, Stewart Linder, Frank Santillo e o mestre Saul Bass.


Vinte e cinco anos depois encontrei Grand prix na programação de uma emissora de televisão. Movido pela nostalgia que me despertava comichões típicos da adolescência, arrisquei-me a revê-lo, sabendo de antemão que seria tomado pela maior das frustrações. Dito e feito. Primeiro, a constatação mais óbvia: o filme não cabe na TV; perde fatias consideráveis na largura e no comprimento. Segundo: o aparelho manda para as cucuias a perfeita edição de som original, e os avançados recursos óticos da época, como o split screen que divide a tela em imagens da mesma ação ou de outras várias (na telinha o que temos disso é uma sucessão de quadrinhos nos quais quase nada se percebe). Terceiro: não sobram vestígios da overdose de sons e movimentos hipnóticos que acentuavam o ritmo vertiginoso das corridas e nos elevavam a produção de adrenalina e batimentos cardíacos. A televisão transformou um produto vivíssimo e vibrante em algo inerte, totalmente morto.


Pete Aron (James Garner) observa o exame no veículo por Izo Yamura (Toshirô Miffune)

Izo Yamura (Toshirô Miffune) e Pete Aron (James Garner)


Grand prix recebeu os prêmios Oscar de Melhores Efeitos Sonoros e Melhor Montagem. O lendário piloto argentino Juan Manuel Fangio — absoluto recordista de vitórias nos grandes prêmios de Fórmula 1 (1951, 1954, 1955, 1956 e 1957) — interpreta a si mesmo em meio a outros craques das pistas em evidência nos anos 60.





Música e direção musical: Maurice Jarre. Direção de fotografia (Super-Panavision 70mm, Cinerama, Metrocolor) e câmera: Lionel Lindon. Consultor visual, títulos: Saul Bass. Consultoria de corridas: Joakim Bonnier, Richie Ginther, Phill Hill, Graham Hill. Argumento e roteiro: Robert Allan Arthur, com apoio de John Frankenheimer (não creditado). Diálogos adicionais: William Hanley (não creditado). Desenho de produção: Richard Sylbert. Supervisão de montagem: Fredric Steinkamp. Montagem: Henry Berman, Stewart Linder, Frank Santillo, Fredric Steinkamp, Saul Bass. Gravação de som: MGM SSD, Roy Charman, Franklin Milton. Administração: George Cole. Gerente de produção na Inglaterra: Peter Crowhurst. Gerente de produção na Itália: Sam Gorodisky. Gerente de produção em Mônaco e França: Sacha Kamenk. Edição de som e efeitos sonoros: Gordon Daniels. Câmeras da segunda unidade: Jean-Georges Fontenelle, Yann Le Masson, John M. Stephens. Penteados: Sydney Guilaroff. Assistentes de direção: Enrico Isacco, Roger Simons, Stephan Iscovescu, Sacha Kamenk, Sam Itzkovitch. Gerente de unidade de produção: William Kaplan. Maquiagem: Giuliano Laurenti, Sydney Guilaroff, Alfio Manicon. Efeitos especiais: Milt Rice, Robert Bonnig, Jeff Clifford, Jimmy Harris, Garth Inns, Jimmy Ward, Jack Woodbridge. Consultoria técnica: Caroll Shelby. Produção executiva (não creditada): Kirk Douglas, John Frankenheimer, James Garner. Produção de elenco: Irene Howard (não creditada). Gerente de produção na Holanda: Wim Lindner (não creditado). Contrarregra: Frank Agnone, Mickey Lennon (não creditado), Mickey O'Toole (não creditado). Concepção do poster: Tom Jung (não creditado. Som: Harry Warren Tetrick. Edição de som: Van Allen James (não creditado). Concepção de créditos: James S. Pollak (não creditado). Dublês (não creditados): Max Balchowsky, Tom Bamford, Carey Loftin, Ronnie Rondell Jr. Operador adicional de câmera: George Lucas. Primeiro assistente de câmera: Olivier Benoist (não creditado). Eletricista-chefe: George Cole (não creditado). Seleção e supervisão de figurinos: Sydney Guilaroff. Assistente de montagem: Chris Kelly (não creditado). Músicos (não creditados): Laurindo Almeida (violão), Leo Arnaud (percussão), Paul Beaver (órgão), Harry Bluestone (violinos), Perry Botkin Jr. (trombone), Mike Deasy, Carl Fortina (acordeón), Caesar Giovannini (piano), Artie Kane (piano), Milton Kestenbaum (baixo), Mitchell Lurie (clarinete), Virginia Majewski (viola), Shelly Manne (percussão), Michael Melvoin (piano), Red Mitchell (baixo), Uan Rasey (trumpete), Emil Richards (percussão), Lyle Ritz (guitarra), Ethmer Roten (flauta), Bud Shank (saxofone). Continuidade: Lucie Lichtig. Publicidade: Saul Cooper. Fornecimento de câmera para corridas: Frick Enterprises. Equipamento de iluminação: Lee Lighting. Gravação da trilha musical: Private Island Audio. Sistema de mixagem de som: Westrex Recording System em 6 pistas nas cópias em 70 mm. Tempo de exibição: 179 minutos.


(José Eugenio Guimarães, 1975; revisto e ampliado em 1995)




[1] O diretor ainda vivia quando esta aprecição passou por revisão em 1995. Faleceu em 2002.
[2] Com base na revisão de 1995.

domingo, 18 de dezembro de 2016

MAIS DUAS PREMIAÇÕES PARA O BLOG "EUGENIO EM FILMES"

Eugenio em Filmes foi agraciado com os prêmios de duas comunidades do Google+:



1) Inspiración sin Barreras, por "Reconhecimento ao Blog Mais Inspirado".






2) Vientos Estelares, com o "Prêmio Estelar Pela Contribuição à Cultura e à Arte".






Da parte de quem se lançou neste espaço sem nada saber de blogs e blogosfera e, consequentemente, nunca pensou em premiações, ouso dizer que me sinto muito feliz e honrado.


Muito obrigado.



José Eugenio Guimarães

Niterói/RJ, 18 de dezembro de 2016

PETER BOGDANOVICH ESTREIA NA DIREÇÃO DE CINEMA AMPARADO POR ROGER CORMAN

Um filme simples, bom, barato, inteligente, rodado com uma rapidez impressionante: é Na mira da morte (Targets, 1968), primeira incursão de Peter Bogdnovich na realização cinematográfica e um dos precursores da onda de nostalgia que percorreu o cinema estadunidense do final dos anos 60 à década seguinte. O próprio diretor se faz personagem da história contada em duas frentes narrativas que avançam paralelas, aparentemente desconectadas, para convergir apenas no final. Interpreta Sammy Michaels, diretor e roteirista sentimentalmente inspirado pelo cinema de outrora. Pronuncia estes famosos dizeres: "Todos os grandes filmes já foram feitos". Boris Karloff faz uma representação de si mesmo: o ator Byron Orlok, prestes a se aposentar, nome referencial do velho cinema de terror que não assusta a mais ninguém na atualidade. O pavor, agora, é assumidamente real e mortal, parece concluir diante da visão de uma sociedade totalmente mecanizada e acuada pelo crescente número de matadores seriais na forma de franco-atiradores representados por Bobby Thompson (Tim O'Kelly). Quanto a isto, é um filme atualíssimo. Põe em questão as causas da violência urbana nos Estados Unidos, país que evita qualquer discussão acerca da aprovação de medidas de controle sobre a posse de armamento individual. Na mira da morte está apoiado em roteiro inteligentíssimo que lamenta a decadência do cinema — inclusive como espaço de exibição — e, concomitantemente, das próprias instâncias de socialização em época de celebração do mais desatado individualismo egoísta. Os momentos finais, primorosos, combinam à perfeição ilusão e realidade em exemplar trabalho de montagem executado pelo próprio diretor. Segue apreciação escrita em 1975, revista e ampliada em 1988.







Na mira da morte
Targets

Direção:
Peter Bogdanovich
Produção:
Peter Bogdanovich
Paramount Pictures, Saticoy Productions
EUA — 1968
Elenco:
Boris Karloff, Tim O'Kelly, Tim Burns, James Brown, Nancy Hsueh, Arthur Peterson, Mary Jackson, Tanya Morgan, Sandy Baron, Monty Landis, Paul Condylis, Mark Dennis, Stafford Morgan, Daniel Ades, Peter Bogdanovich, Warren White, Geraldine Baron, Gary Kent, Ellie Wood Walker, Frank Marshall, Byron Betz, Mike Farrell, Randy Quaid, Carol Samuels, Jay Daniel, James Morris, Susan Douglas, Kirk Scott, Diana Ashley, Raymond Roy, Kay Douglas, Robert Cleaves, Anita Poree, James Bowie, Pete Belcher, Elaine Partnow, Timothy Burns, Susan Douglas Rubes, Jay Daniel, Git Luboviski, Milton Luboviski, Don Steele.


o ator Boris Karloff e o diretor Peter Bogdanovich quando das filmagens de Na mira da morte



Peter Bogdanovich vinha de um documentário à base de entrevistas, o pouco visto The great professional: Howard Hawks (1967), realizado para a TV, quando estreou na direção cinematográfica com Na mira da morte, estrelado por Boris Karloff. Automaticamente associado ao cinema de terror, o ator percorria as telas desde os anos 30, interpretando criaturas de Frankenstein, múmias, assassinos perversos, dementes perigosos, lobisomens, vampiros... Toda sorte de entidades maléficas daqui e do além. Em Na mira da morte compõe basicamente um retrato de si próprio. É Byron Orlok, reconhecido ator de filmes de terror já no inverno de seu tempo, prestes a se aposentar. Percebe, com triste resignação, que os malignos personagens aos quais deu vida no celulóide perderam completamente o interesse. Inclusive, deixaram de assustar. Hoje, sustenta, o verdadeiro horror está nas ruas das grandes metrópoles, estampado nas páginas dos jornais; é verdadeiro, machuca e mata em vez de simplesmente assustar para distrair, como faziam os filmes de antanho — simulacros de luzes, sombras e maquiagem. Orlok teme o mundo real que o tornou antigo e desatualizado. Por isso, quer abandonar o cinema o quanto antes, para desalento do diretor e roteirista Sammy Michaels (Bogdanovich).



Acima e abaixo: Boris Karloff no papel do ator Byron Orlok, basicamente uma representação dele mesmo

  
Bobby Thompson (O'Kelly) simboliza o horror real tão temido por Orlok. É vendedor de seguros afeiçoado às armas de fogo. Possui um vasto e diversificado arsenal. O roteiro de Peter Bogdanovich e do não creditado Samuel Fuller — baseado em história de Polly Platt em parceria com o diretor — não se aprofunda na psicologia do personagem. Porém, revela o suficiente aos propósitos do filme: é um quadro de carência, individualismo, fastio, ociosidade e desprezo pela vida. Move-o a compulsão assassina; o simples prazer de matar. Começa em casa. Com frieza e indiferença, como se praticasse um ato corriqueiro, elimina a esposa Ilene (Tanya Morgan), a mãe Charlotte (Jackson) e o entregador do supermercado (White). Em seguida, aquartela-se sobre o tanque de uma refinaria às margens de autoestrada e dispara nos veículos. Foge com a chegada da polícia. Esconde-se no cine drive-in prestes a ser inaugurado com a exibição de The terror — último filme dirigido por Sammy Michaels e protagonizado por Byron Orlok[1]. O ator marcará presença na ocasião, quando receberá homenagens. Entrincheirado na armação que sustenta a tela, Bobby aguarda o apagar das luzes para executar sua sinfonia particular de terror: disparar sobre a plateia. Fere, mata e provoca pânico.



Acima e abaixo: o terror real representado pelo franco-atirador Bobby Thompson (Tim O'Kelly)


Bogdanovich é, provavelmente, o principal deflagrador da onda de nostalgia que dominou o cinema estadunidense do fim da década de 60 ao decênio seguinte. O período determinou o revival de temas e gêneros caros aos anos 30 e 40, épocas áureas de Hollywood. No exercício da crítica redescobriu John Ford, Howard Hawks, Raoul Walsh, Leo McCarey, Allan Dwan, George Cukor e outros mestres. Transformou-os em motivos de culto permanente. Materializou a paixão por esses nomes em livros, entrevistas e filmes que cumpriram a louvável tarefa de impedir que o véu do esquecimento baixasse sobre eles. Sobre o diretor de No tempo das diligências (Stagecoach, 1939), Rastros de ódio (The searchers, 1956) e O homem que matou o facínora (The man who shot Liberty Valence, 1962), rodou o elogiadíssimo e fundamental documentário Directed by John Ford (1971).


Como muitos companheiros de geração, Bogdanovich começou a dirigir amparado por Roger Corman, de quem foi assistente em Os anjos selvagens (The wild angels, 1967). Com invejável competência realizou de imediato um conjunto sedutor e referencial de filmes nos quais homenageia ídolos e a produção de antanho: A última sessão de cinema (The last picture show, 1971) é amarga visão, em tom de balada, sobre uma América que se esvai; Essa pequena é uma parada (What’s up doc?, 1972), refaz com felicidade a screwball comedy no melhor estilo de Howard Hawks em Levada da breca (Bringing up baby, 1938); e Lua de papel (Paper moon, 1973) redescobre o período da grande depressão na estrada que a família Joad percorreu em As vinhas da ira (The grapes of wrath, 1940), de John Ford. A seguir, fracassos sucessivos lhe desfizeram a reputação: Daisy Miller (Daisy Miller, 1974), Amor, eterno amor (At long last love, 1975) e No mundo do cinema (Nickelodeon, 1977).


Além de financiar Na mira da morte, Corman cedeu equipamentos, instalações e Boris Karloff a Bogdanovich. O ator estava a três dias do vencimento do contrato que o ligava ao patrocinador. Essa é a principal explicação para a rapidez das filmagens e da aparente desigualdade narrativa, fatores que de modo algum constituem problema. Na mira da morte vale pelo argumento instigante e atual, transformado em roteiro inteligente e eficaz. Começa com a apresentação dos números de assassinatos cometidos por destrambelhados franco-atiradores estadunidenses nos últimos anos. A seguir, questiona a ultraliberal legislação do país sobre a posse de armamento individual. Pergunta: qual a razão de tantos crimes? Por que, apesar de tudo, os Estados Unidos não têm leis para a regulamentação e controle da posse de armas?


Bogdanovich lança mão dessas evidências para discutir a qualidade do horror em suas vertentes cinematográficas e fictícias, cotidianas e reais. Orlok conclui, prestes a se retirar de cena: o horror mudou. Bobby Thompson é prova disso. O velho ator e o franco-atirador protagonizam duas frentes narrativas que convergem apenas no desfecho. Enquanto isso, o cinema confronta a si e a realidade. Os mitos da tela de outrora são homenageados, a começar pelo próprio Karloff/Orlok. A narrativa apresenta o espectador a trechos do primeiro filme importante do ator e do personagem que interpreta em Na mira da morte: O Código Penal (The Criminal Code, 1931), de Howard Hawks. Diante das cenas, Sammy Michaels — apaixonado por cinema como o Peter Bogdanovich que o representa — entra em êxtase. Em seguida pronuncia a famosa frase: “Todos os grandes filmes já foram feitos”. É como se a decadência do cinema testemunhada por Orlok e confirmada por Michaels explicasse a degradação do cotidiano; é como se a superação de uma série de monstros de fantasia que pululavam nas telas estivesse por trás do surgimento de insanos de verdade como Bobby Thompson.


Byron Orlok (Boris Karloff) com o diretor e roteirista Sammy Michaels (Peter Bogdanovich)
"Todos os grandes filmes já foram feitos"


Após as imagens de O Código Penal segue uma sequência particularmente significativa. Bêbado, sem condições de voltar para casa, Michaels adormece na cama de Orlok. Este, contrariado, ocupa o outro lado do leito. É uma passagem simbólica. Informa tudo a respeito do gosto de Bogdanovich por cinema e de sua íntima relação com o meio. Ele, que resgatou filmes e mestres de ontem, e tentou, no começo da carreira, refazer antigos e imortais sucessos, paga tributo às suas referências deitando-se literalmente na cama de um digno representante do passado ao qual tanto deve e valoriza. Michaels e Orlok ou Bogdanovich e Karloff, estirados lado a lado, formam a síntese entre o velho e o novo proposta pelo realizador de Directed by John ford, A última sessão de cinema e este Na mira da morte. Protagonizam, quando acordam, o único momento de humor da realização. Michaels leva um susto ao se deparar com Orlok na mesma cama. Diante do protesto do velho, responde: “Como não ficar assustado se a primeira coisa que vejo de manhã é o rosto de Byron Orlok” (ou de Boris Karloff)? Este por sua vez, apavora-se com a própria imagem projetada no espelho.


Byron Orlok (Boris Karloff) se assusta com a própria imagem espelhada

  
No drive in, local do desfecho de Na mira da morte, Bogdanovich aproxima três paixões estadunidenses: automóveis, armas e cinema. As duas primeiras são as mazelas do país, acredita. Provavelmente, nelas pensava Orlok ao comentar sobre a violenta e congestionada Los Angeles: “Meu Deus, como essa cidade ficou feia!” Horrível também é o drive in, mais estacionamento que cinema, mau gosto que só poderia vingar num país que tem os automóveis como extensões dos animais de estimação, os cães sobre rodas. A visão que o filme fornece do lugar é desoladora: algo como o cemitério da sétima arte. Não deixa de ser irônico e sintomático homenagear o mito Orlok num lugar como esse.



Acima e abaixo: o terror real, Bobby Thompson (Tim O'Kelly, é confrontado pelo ator que encarnou o terror cinematográfico, Byron Orlock (Boris Karloff)


No entanto, o cinema vence o confronto com a barbárie. Após disseminar o pavor, o franco-atirador é descoberto, justamente por Orlok. Somente a personificação do terror cinematográfico, naquele momento protagonista de The terror, poderia vencer a indiferente demência do assassino serial. A montagem do próprio Bogdanovich ordena tudo à perfeição, ao costurar realidade e cinema, às vezes interpenetrando-os, iludindo assassino e espectador. No pátio Orlok avança rumo ao matador; um deslocamento que se confunde com a movimentação executada na tela do drive-in pelo personagem que interpreta. Bobby avista um e outro, Orlok e o ator caracterizado em The terror. Assusta-se, entra em desespero e se descontrola. São duas figuras idênticas indo ao seu encontro. Uma é real; a outra, fictícia. Começa a atirar a esmo, para todos os lados. Fere Orlok, mas não o detém. O assassino do drive in se apavora com a dupla imagem do horror, oferecida pela ficção e por aquele que tão bem soube representá-la. De repente, o peso da bengala do ator cai sobre Bobby. Este se agacha, chora, protege o rosto com as mãos qual criança apavorada e prestes a levar uma surra. Depois desse final, exemplo de grande cinema, Bogdanovich não precisaria fazer mais nada para demonstrar competência. Mas então ficaríamos sem as imagens evocativas de Rio Vermelho (Red River, 1948), de Howard Hawks, no centro do também evocatório A última sessão de cinema: aí o gigante Tom Dunson, interpretado com incomparável naturalidade por John Wayne, pede ao filho adotivo Math Garth (Montgomery Clift) para levar a boiada do Texas ao Missouri na epopeia de abertura da mítica trilha Chisholm.





Direção de fotografia (Pathécolor): László Kovács. Roteiro: Peter Bogdanovich com a co-autoria de Samuel Fuller (não creditado), baseado em história de Polly Platt e Peter Bogdanovich. Música: Charles Greene, Brian Stone. Desenho de produção: Polly Platt. Figurinos: Polly Patt. Montagem: Peter Bogdanovich. Produção associada: Daniel Selznick. Eletricista-chefe: Raymond L. Aguilar. Contrarregra: James Campbell. Assistente de direção: Gilles De Turenne. Edição de som: Verna Fields. Assistente de direção de arte: Scott Fitzgerald. Maquiagem: Scott Hamilton. Continuidade: Joyce King. Som: Sam Kopetzky. Gerente de produção: Paul Lewis. Assistente para o diretor: Frank Marshall. Assistente de produção: James Morris. Técnico-chefe: Tom Ramsey. Assistente de câmeras: Peter Sorel. Bill Pecchi (não creditado). Assistente de montagem: Mae Woods. Créditos: Cinema Research. Regravação de som: Ryder Sound Service. Produção da música de rádio: Charles Greene, Brian Stone. Produção executiva: Roger Corman (não creditado). Efeitos especiais: Gary Kent (não creditado). Agradecimentos à: Columbia Pictures Corporation por ceder as imagens de O Código Penal (The Criminal Code, 1931), de Howard Hawks. Tempo de exibição: 91 minutos.


(José Eugenio Guimarães, 1975; revisto e ampliado em 1988)


[1] As imagens desse filme são da realização homônima que Roger Corman rodou em 1963, protagonizada por Boris Karloff e Jack Nicholson. No Brasil foi exibido com título que traduz fielmente o original.

quarta-feira, 14 de dezembro de 2016

SOBRE O QUARTO ANIVERSÁRIO DO BLOG: UM TEXTO DA QUERIDA AMIGA E REVISORA OLÍMPIA OLIVEIRA

De Olímpia Oliveira, querida amiga e revisora de meus textos, palavras que muito me emocionaram com respeito ao quarto aniversário do blog, à minha fixação fordiana e particular cinefilia - José Eugenio Guimarães. 




Olímpia Oliveira, à direita, com a filha Luísa Peixoto
Olímpia, incentivadora do blog, acompanha-o desde o início
Olímpia faz a revisão dos textos e propõe ajustes



Com a leitura da resenha - pré-postada -, de Estigma da crueldade (The bravados, 1958), de Henry King, inicio a missiva em homenagem a José Eugenio Guimarães e a seu blog Eugenio em Filmes. Este completa quatro anos, na próxima terça, dia 13 de dezembro. Data mesma do AI-5, em 1968.



Eugenio é um fanático – incondicionalmente apaixonado pela sétima arte! Nas noites de sexta, após as aulas da universidade, aqui, em “Escovas”, - como ele costuma dizer -, demos início aos encontros com o cinema, na casa de amigos, com direito a comes e bebes e boa companhia – lá pelos anos 2010/11. É claro que quem indicava os filmes era o nosso cinéfilo, espirituoso e da boa cachaça, Eugenio.



John Ford sempre marca presença na vida e assuntos de Eugenio
As vinhas da ira (The grapes of Wrath, 1940), por exemplo...










...E também, entre muitas outras realizações fordianas, Depois do vendaval (The quiet man, 1952), No tempo das diligências (Stagecoach, 1939), O homem que matou o facínora (The man who shot Liberty Valance, 1962),  Como era verde o meu vale (How green was my valley, 1941) e Rastros de ódio (The searchers, 1956).


John Ford se apresentou à sombra e à companhia dele. Começou assim uma parceria – a leitura e a revisão do arquivo imenso de resenhas. A intenção de publicar o acervo aflorou. À 0h de todo domingo, um novo texto é postado no Eugenio em Filmes.


Acompanhei de perto a iniciativa do blog e sua (a dele) satisfação em ver pronto aquilo que imaginara: o espaço de projeção com cortinas verdes e as cadeiras vermelhas da plateia.



Eugenio - para aqueles que bem o conhecem - é cheio de manias! Uma delas é sortear, em meio às suas inúmeras pastas, a apreciação a ser postada de determinado filme. Depois, a envia para mim. Faço a leitura e a revisão de bobagens ortográficas, dando alguns pitacos na escrita cinematográfica: minha “câmera” lê seus artigos, sim – artigos –, análises e impressões, atentando aos detalhes, aqueles passados desapercebida ou despercebidamente. Tanto faz. É um deleite para aquele conhecedor das telas. Às vezes até procuro o filme para assistir após a primeira leitura, e aí, quando retorno, me identifico com o que está ali posto. Amo as imagens dos filmes e daquelas fotografadas na escrita. Elas demandam época, tempo, história e sociedade.



São clássicos, em sua maioria. Clássicos sim – e não “filmes antigos”. ...rsrs.! Acho que nasci tarde demais! Preciso de muitas noites de sofá até colocar em dia!



Não é um blog para qualquer um. E é para todos também. Os textos são críticos com uma pitada de sarcasmo e ironia, além de informativos e contextualizados. Às vezes, as linhas da pauta são duras e cortantes, mas necessárias por serem políticas e politizadas.



Yamê Peixoto, também filha de Olímpia Oliveira
Yamê  seguiu atentamente as minhas orientações na concepção do layout do blog:  simples, de cores leves, com destaque, acima de tudo, para o texto



Amigo queridão, é um enorme prazer acompanhá-lo na minha ignorância cinéfila.



Nos encontraremos na próxima sessão. Parabéns pelos prêmios e agrados aos amantes da sétima arte!



Beijos de Axé! E abraços de Saudades!



E, claro!
FORA TEMER! E ELEIÇÕES JÁ!"



Olímpia Oliveira
Vassouras, 12 de dezembro de 2016