domingo, 14 de agosto de 2016

OS BREWSTER E AS ASSOMBRADAS COMPORTAS DO CANAL DO PANAMÁ

Os talentosos John Alexander, Josephine Hull e Jean Adair repetiram no cinema os personagens que interpretaram no palco. Infelizmente, Boris Karloff não teve igual oportunidade, mas foi substituído à altura por Raymond Massey. Porém, graças às melhores tramas do imponderável, Cary Grant ficou com o papel originalmente defendido no tablado por Bob Hope. De quebra, ainda há Peter Lorre como o mais improvável dos cirurgiões plásticos. Cada formação social atribui significados e limites ao "normal" e ao "patológico". Também se sabe, talvez por Machado de Assis, que "De perto ninguém é normal". Acerca disso, a palavra deve ser dada a Mortimer Brewster (Grant) em Esse mundo é um hospício (Arsenic and old lace, 1941), deliciosa e movimentada comédia maluca de Frank Capra. É realização repleta de liberdades nas considerações aos limites da sanidade e, consequentemente, da loucura, sem esquecer o espinhoso tema da morte. Os trabalhos da "lúgubre senhora" são bancados por generosas, simpáticas e brejeiras velhinhas resguardadas por segredos cuidadosamente abrigados no porão, graças ao empenho do próprio Theodore Roosevelt, ex-presidente dos Estados Unidos. Mortimer descobre em família verdades que abalam os pilares de sua aparente normalidade. Por outro lado, atiçam a insanidade de Jonathan Brewster (Massey) o irmão psicopata e foragido. Esse mundo é um hospício explica porque François Truffaut incluiu Frank Capra entre os "quatro ases" da comédia estadunidense. A apreciação a seguir é de 1988.







Esse mundo é um hospício
Arsenic and old lace

Direção:
Frank Capra
Produção:
Howard Lindsay, Russel Crouse
Warner Brothers-First National Picture, Frank Capra Productions
EUA — 1941
Elenco:
Cary Grant, Priscilla Lane, Jack Carson, Raymond Massey, Edward Everett Horton, Peter Lorre, James Gleason, Josephine Hull, Jean Adair, John Alexander, Grant Mitchell, Edward McNamara, Garry Owen, John Ridgely, Vaugham Glaser, Chester Clute, Charles Lane, Edward McWade e os não creditados Spencer Charters, Jimmy the Crow, Sol Gorss, Herbert Gunn, Roland Jones, Hank Mann, Spec O'Donnell, Lee Phelps, Don Phillips, Raymond Walburn, Leo White, Jean Wong.



Diversão no estúdio durante intervalo das filmagens de Arsenic and old lace
O diretor Frank Capra - de pé - e, ao piano,  Cary Grant,  intérprete de Mortimer Brewster


Apesar de lançado somente em 1944, Esse mundo é um hospício foi filmado três anos antes. Frank Capra o realizou pouco depois de Adorável vagabundo (Meet John Doe, 1941). A seguir, de 1942 a 1945, dedicou-se por inteiro ao esforço bélico. Participou da Segunda Guerra Mundial como documentarista da frente e da retaguarda das batalhas. Enquanto esteve mobilizado, dirigiu 13 documentários factuais e de propaganda[1].


Esse mundo é um hospício é adaptação da peça de humor negro de Joseph Kesselring, encenada anos a fio na Broadway. Praticamente não sofreu alterações na transposição para a tela. O sucesso de público da montagem teatral explica o atraso de três anos no lançamento do filme. Devido às cláusulas contratuais, só poderia entrar em cartaz depois de encerrada a carreira no palco.


Mortimer Brewster (Cary Grant) e Elaine Harper (Priscilla Lane) entre as tias Martha (Jean Adair) - atrás - e Abby (Josephine Hull)


É uma das mais deliciosas e divertidas comédias cinematográficas. Brinca com a morte sem se preocupar em demonstrar o menor respeito com essa dama de triste figura, garantia do fim de todos. A ausência de limites com um tema cercado de tabus é, provavelmente, a causa do reduzido público que arregimentou quando do lançamento. Uma explicação para o fracasso é esta: no cinema, os aspectos macabros, irreverentes e profanos da encenação estão mais próximos do espectador e em permanente movimento; no teatro, o ponto de vista permanece em geral inalterado; portanto, é mais impessoal e distanciado.


É caso único na filmografia do diretor, principalmente se for relacionado junto de outras realizações caprianas do período. Desta vez Capra não concentra a ação em torno de um indivíduo abnegado, em luta pela redenção dos valores da coletividade esmagada pela maquinaria fria da ambição econômica e política, coligada muitas vezes aos interesses mais mesquinhos e corruptos. Este assunto ilustra os trabalhos mais famosos do cineasta, classificados na rubrica “filmes do populismo”: O galante Mr. Deeds (Mr. Deeds goes to town, 1936), Do mundo nada se leva (You cant’t take it with you, 1938), A mulher faz o homem (Mr. Smith goes to Washington, 1939) e Adorável vagabundo.


O “herói” de Esse mundo é um hospício não é porta-voz de uma causa e está apartado de qualquer problemática social. O filme, da mesma forma, passa ao largo dessas questões. Mortimer Brewster (Grant) se preocupa somente consigo mesmo, e como! Tem razões de sobra para isso. Além de severo crítico teatral, é um famoso e convicto celibatário. Publicou a Bíblia do solteiro, autêntico libelo contra o casamento. No entanto, é flagrado no começo do filme na fila do cartório de registro civil, prestes a renegar sua mais cara profissão de fé. Contrai matrimônio com Elaine Harper (Lane), filha de pastor metodista. A garota mora no Brooklin e tem por vizinhas as adoráveis e saltitantes tias do noivo: Martha (Adair) e Abby (Hull). Ambas dividem um casarão com Teddy (Alexander), o sobrinho louco varrido que se identifica a Theodore Roosevelt, ex-presidente dos Estados Unidos e um dos principais responsáveis pela construção do Canal do Panamá — dado fundamental para a plena compreensão de Esse mundo é um hospício.


Mortimer Brewster (Cary Grant) e Elaine Harper (Priscilla Lane)


Antes de partir para a lua-de-mel nas Cataratas do Niagara, Mortimer leva aos parentes a notícia do casamento. Entretanto, estaria melhor se não o fizesse. Descobrirá verdades terríveis sobre as tias. São mais loucas que o primo Teddy. Aparentemente normais, as simpáticas e brejeiras velhinhas dedicam a vida a despachar desta para a melhor os idosos infelizes, solitários e enfermos que as procuram atraídos pelo aviso "Quartos para alugar”. Uma taça de vinho de sabugueiro misturado a um coquetel fatal põe fim ao sofrimento dos coitados. Até o momento Martha e Abby despacharam doze pobres-diabos. São enterrados ali mesmo, no porão, batizado de Panamá. Teddy é responsável pelas escavações das comportas do canal, ou melhor, das covas. As inumações são realizadas com todo o respeito e piedade cristã, ao som de hinos e leituras bíblicas. Não é por maldade que agem Martha e Abby. Muito ao contrário! Ambas acreditam piamente que fazem o bem ao abreviar o sofrimento dos anciãos involuntariamente transformados em suas vítimas.


O incauto Mr. Witherspoon (Edward Everett Horton) prestes a ingerir o batizado vinho de sabugueiro servido por Abby (Josephine Hull) e Martha (Jean Adair)


Mortimer percebe que algo vai mal ao descobrir um corpo em posição jacente na arca da sala, na "espera" da conclusão de mais uma "comporta" encomendada a Teddy. Apesar de apavorado, o personagem interpretado por Cary Grant tem tempo de impedir que mais um coitado beba da fatal mistura. Só lhe resta uma alternativa: providenciar a internação das tias e do primo em um manicômio, mas sem levantar suspeitas quanto ao porão e às "comportas do canal", de modo a proteger os familiares de complicações com a justiça. Aliás, riscos a tanto existem: policiais periodicamente visitam a casa para um agradável e divertido bate-papo com as tias ou em busca de donativos destinados às obras de caridade, sempre providenciados pelas prestativas senhoras — afinal, os mortos não sentirão falta de seus pertences.


Porém, para atrapalhar os planos de Mortimer aparece o irmão Jonathan (Massey), foragido da justiça, assassino e psicopata em busca de abrigo. Está acompanhado de um cadáver e um cúmplice, o Dr. Einstein (Lorre) — suposto cirurgião plástico responsável pela alteração periódica da fisionomia do facínora com o fim de despistar a polícia. Com tantas marcas no rosto, o bandido é a própria duplicata da criatura de Frankenstein, tantas vezes vivida no cinema por Boris Karloff. Este interpretou Jonathan no palco. Não teve disponibilidade para reviver o personagem no cinema, mas foi substituído à altura por Raymond Massey.


Teddy Brewster - aliás, Theodore Roosevelt tal e qual -, Dr. Einstein (Peter Lorre) e Jonathan Brewster (Raymond Massey) 


Três atores da montagem teatral participam da encenação de Capra: Josephine Hull, Jean Adair e John Alexander, todos em férias do palco por ocasião das filmagens. Cary Grant, felizmente, foi escalado para viver o protagonista. Assim, livrou o público da insuportável presença de Bob Hope. Aceitou 150 mil dólares para interpretar Mortimer. Desse montante, desembolsou 50 mil e direcionou o restante ao esforço de guerra.


Ao tomar ciência dos macabros eventos, Mortimer praticamente esquece o casamento, a mulher e o motorista de táxi (Owen). Este passa todo o filme à espera do casal que deveria conduzir ao embarque para a lua-de-mel. Diante de tanta loucura na família, o protagonista manifesta preocupação com a própria sanidade, principalmente com seus genes e, acima de tudo, com a saúde mental da prole que poderá ter com Elaine. Desde a revelação do corpo na arca, Esse mundo é um hospício se transforma em frenética comédia maluca, repleta de correrias, diálogos acelerados e espantos de Mortimer, além de observações surrealistas e espirituosas das tias e intervenções macabras dos criminosos. Toda a ação acontece praticamente em um só cenário: o casarão dos Brewster. A exiguidade do espaço, aproveitada nos mínimos detalhes, concentra a comicidade do filme na performance dos atores em permanente movimentação. A expressão catatônica e a agitação frenética de Mortimer  parece mais louco que os parentes  se combinam perfeitamente com a alegre e letal inocência das tias; cruzam-se magnificamente com o ar presidencial de Teddy; e fazem contraponto à ameaça que toma conta do ambiente com a chegada do perverso e enfurecido Jonathan. Peter Lorre, qual aparvalhado cientista louco premido pelas circunstâncias, repete, no fundo, personagens que interpretou desde M, o vampiro de Dusseldorf (M, eine stadt sucht den moerder, 1931), de Fritz Lang. É impossível conter o riso, principalmente diante da expressão algo impassível e frustrada de Jonathan ao descobrir que tem, nas tias, competidoras à altura, a ponto de se igualar a elas na disputa do jogo mortal. É quando decide dar cabo de Mortimer — seu desafeto desde a infância — para desempatar a partida.


Tia Martha (Jean Adair) revela o segredo da arca ao incrédulo sobrinho Mortimer (Cary Grant)

Tias Abby (Josephine Hull) e Martha (Jean Adair)


No fim, tudo termina bem, apesar da desastrada intervenção policial. O porão permanece como segredo da família — afinal, quem daria crédito aos testemunhos de gente tão louca? Mesmo assim, Elaine quase põe tudo a perder. A pronta intervenção do marido salva a situação. Os nubentes partem para a lua-de-mel enquanto as tias e "Teddy Roosevelt" tomam o caminho de uma casa de repouso. Jonathan, recapturado, é devolvido ao manicômio. Enquanto isso, o Dr. Einstein se aproveita de improvável distração da polícia para escapar, mas a tempo de autorizar, com sua suspeita assinatura, a internação dos loucos. Antes do encerramento definitivo, Mortimer descobre, com grande alívio, que não é exatamente um Brewster. Apesar do sobrenome, foi adotado. Portanto, não tem motivos para temer as peças que a genética poderia lhe pregar, inclusive aos seus descendentes. Poderá levar uma vida tranquila ao lado de Elaine.


Dr. Einstein (Peter Lorre), Jonathan (Raymond Massey), Abby (Josephine Hull), Mortimer (Cary Grant), Elaine (Priscilla Lane) e Martha (Jean Adair)

O perigoso Jonathan Brewster (Raymond Massey) é aprisionado 


Frank Capra foi sabiamente considerado por François Truffaut como o quarto integrante do four de ases da comédia estadunidense ao lado de Leo McCarey, Ernst Lubitsch e Preston Sturges. Retoma com Esse mundo é um hospício temas caros da comédia burlesca, subgênero no qual se iniciou ao escrever argumentos e roteiros para filmes com Harry Langdon[2] e outros produzidos por Hal Roach ou sob a direção de Mack Sennett. Por isso, o título em apreço é um feliz reencontro com a melhor tradição do cinema estadunidense das origens, cujas raízes parecem estar irremediavelmente perdidas. Da mesma forma desapareceram, sem deixar herdeiros, os principais mestres que animaram o espírito cômico de toda uma época: cineastas dotados de verve e talento que souberam, como poucos, combinar o humor com a inteligência e o refinamento.





Roteiro: Julius J. Epstein, Philip G. Epstein, com base na peça de Joseph Kesselring. Direção de fotografia (preto e branco): Sol Polito. Direção de diálogos: Harold Winston. Montagem: Daniel Mandell. Direção de arte: Max Parker. Som: C. A. Riggs. Maquiagem: Perc Westmore, George Bau (não creditado), John Wallace (não creditado). Efeitos especiais: Byron Haskin, Robert Burks. Música: Max Steiner. Orquestração e arranjos: Hugo Friedhoffer. Direção musical: Leo F. Forbstein. Figurinos: Orry-Kelly. Assistente de direção: Russell Saunders (não creditado). Produção executiva: Jack L. Warner. Produção associada: Frank Capra (não creditado). Penteados: Anita De Beltrand (não creditada). Gerente de unidade: Eric Stacey (não creditado). Gerente de produção: Steve Trilling (não creditado). Segundo assistente de direção: Claude Archer (não creditado). Contrarregra (não creditada): Lucien Hafley, Keefe Maley. Assistência de contrarregra (não creditada): Alfred Williams, Levi C. Williams. Mixagem de som: Everett Alton Brown (não creditado). Segundo operador de câmera: Wesley Anderson (não creditado). Assistentes de câmera (não creditados): Frank Evans, Harold Noyes. Fotografia de cena: Mickey Marigold (não creditado). Eletricista-chefe: Charles O'Bannon (não creditado). Joalheria: Eugene Joseff (não creditado). Guarda-roupa (não creditado): Cora Lobb, Leon Roberts. Produtores no palco: Russel Crouse, Howard Lindsay. Publicidade: Bob Fender (não creditado). Pesquisa: Herman Lissauer (não creditado). Marcação de cena para Cary Grant: Mal Merrihugh (não creditado). Revisão do roteiro: Wandra Ramsey (não creditada). Estúdio de mixagem de som: RCA Sound System. Tempo de exibição: 118 minutos.


(José Eugenio Guimarães, 1988)



[1] Sete desses filmes são da série Porque combatemos (Why we fight): Prelude to war (1942); The nazis strike (1943); Divide and conquer (1943), codirigido por Anatole Litvak; The battle of Britain (1943); The negro soldier in World War II (1944); The battle of Russia (1944); e The battle of China (1942), codirigido por Anatole Litvak. Os quatro primeiros foram exibidos no Brasil com títulos traduzidos fielmente dos originais: Prelúdio de guerra, Os nazistas atacam, Divida e vencerás, e A batalha da Inglaterra. Outros documentários são: Tunisian victory (1944), exibido entre nós como A conquista da Tunísia; Know your ally: Britain (1944); Know your enemy: Germany (1945); Know your enemy: Japan (1945); codirigido por Joris Ivens; War comes to América (1945); e Two down, one to go (1945).
[2] Frank Capra também dirigiu Langdon em Um homem forte (The strong man, 1926) e Pinto calçudo (Long pants, 1927).