domingo, 9 de julho de 2017

FRED ZINNEMANN ÀS VÉSPERAS DO ATAQUE JAPONÊS AO HAVAÍ DE JAMES JONES

Uma das realizações mais incensadas e premiadas do cinema estadunidense dos anos 50 é A um passo da eternidade (From here to eternity, 1953), de Fred Zinnemann. Será para sempre lembrada pelo provocante e libidinoso beijo entre Karen Holmes (Deborah Kerr) e o Sargento Milton Warden (Burt Lancaster). Também há o antológico e comovedor momento do crepúsculo, quando o soldado Robert E. Lee Prewitt (Montgomery Clift) executa ao clarim o Toque do silêncio em homenagem à memória do companheiro de farda Angelo Maggio (Frank Sinatra). A produção resulta de concisa e eficaz adaptação do alentado romance autobiográfico de James Jones pelo roteirista Daniel Taradash. Conta uma história marcada por questões de consciência, responsabilidade individual, convicções, escolhas e paradoxos. A ação se desenrola na zona de influência do Campo Militar de Schofield em Honolulu, capital do Havaí, às vésperas do fulminante ataque surpresa da Força Aérea do Japão à base naval de Pearl Harbor. A um passo da eternidade teve realização marcada por atritos entre Harry Cohn — truculento fundador e todo poderoso presidente da Columbia Pictures — com o diretor. Não fossem as intermediações e intervenções do produtor Buddy Adler e de Daniel Taradash em favor de Fred Zinnemann, não seria o clássico indiscutível hoje conhecido e reverenciado. Os tensos bastidores das filmagens são dignos de um documentário com pretensões investigativas, inclusive para tentar desvendar os mistérios em torno da escolha do então decadente cantor Frank Sinatra, execrado por Cohn, para o elenco. O poderoso chefão (The godfather) — livro de Mario Puzo e filme de Francis Ford Coppola — oferece para tanto uma explicação bancada pela Máfia e banhada em muito sangue da cabeça decepada de um cavalo. Segue apreciação escrita em 1980.






A um passo da eternidade
From here to eternity

Direção:
Fred Zinnemann
Produção:
Buddy Adler
Columbia Pictures Corporation
EUA — 1953
Elenco:
Montgomery Clift, Burt Lancaster, Deborah Kerr, Frank Sinatra, Donna Reed, Ernest Borgnine, Arthur Keegan, Barbara Morrison, Tim Ryan, Merle Travis, John Dennis, Jack Warden, Philip Ober, Mickey Saughnessy, Harry Bellaver e os não creditados Jean Willes, Claude Akins, Robert Karns, Robert J. Wilke, John Bryant, Joan Shawlee, Angela Stevens, Mary Carver, Vicki Bakken, Margaret Barstow, Delia Salvi, Willis Bouchey, Alvin "Al" Sargent, William Lundmark, Weaver Levy, Tyler McVey, George Reeves, Vicki Bakken, John L. Cason, Mack Chandler, John Davis, Allen Pinson, Brick Sullivan, Carey Leverette, Carleton Young, Don Dubbins, Douglas Henderson, Edward Laguna, Fay Roope, Freeman Lusk, Guy Way, James Jones, Joe Roach, John D. Veitch, Joseph D. Sargent, Kristine Miller, Louise Saraydar, Manny Klein, Moana Gleason, Norman Wayne, Patrick Miller, Robert Healy, Robert Pike, Al Silvani, Elaine DuPont, Henry Beau, June Horne, Lars Hensen, Norman Wright.



Bastidores de A um passo da eternidade
Ernest Borgnine, caracterizado como o Sargento Judson, é orientado pelo diretor Fred Zinnemann



A um passo da eternidade está entre as mais laureadas realizações. Da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood conquistou oito Oscars nas categorias de Filme, Ator Coadjuvante (Frank Sinatra), Atriz Coadjuvante (Donna Reed), Direção[1], Roteiro Adaptado, Fotografia em Preto e Branco, Som e Montagem. Arrebatou os prêmios para Filme, Direção e Ator (Burt Lancaster) do Círculo de Críticos de Nova York e os Globos de Ouro de Direção e Ator Coadjuvante (Frank Sinatra). Outras distinções vieram do Writers Guild of America para o Roteiro e do Directors Guild of America pela Direção Extraordinária em Cinema. Por fim, entre outras condecorações, foi Hors concours no Festival de Cannes de 1954 com o Prêmio Especial do Júri para Fred Zinnemann.


Orçado em dois mil e quatrocentos dólares, foi, por 23 anos, o filme de maior bilheteria da Columbia. Atualmente o posto é ocupado por Contatos imediatos do terceiro grau (Close encounters of the third kind, 1977), de Steven Spielberg. O grande público atraído por ocasião do lançamento obrigou sala exibidora de Nova York a adotar expediente inédito e radical: sessões contínuas durante todo o dia, solução prolongada durante semanas.


Os bastidores da produção estão entre os mais tumultuados. Poucos acreditavam na possibilidade de sucesso. Do começo ao fim o relacionamento de Fred Zinnemann com Harry Cohn, big boss da Columbia, foi marcado por atritos. O chefe não confiava na capacidade do diretor. Dele execrou e sabotou o trabalho anterior: o sensível Cruel desengano (The member of the wedding, 1952), fracasso de bilheteria confinado aos programas duplos nas salas de pior categoria. Por isso, queria outro para tocar o projeto. Sequer se importava com o fato de Zinnemann ter realizado o irretocável Matar ou morrer (High noon) um ano antes.


Felizmente, o roteirista Daniel Taradash e o produtor Buddy Adler eram contrários a Cohn. Protegeram Zinnemann de todos os ataques. Taradash ameaçou abandonar o projeto se ele fosse dispensado. O diplomático Adler, por sua vez, intermediou as partes. Às vezes recebia as pesadas broncas de Cohn. Também garantiu a integridade do filme: devolveu-o a Zinnemann, que o remontou após a desastrada e devastadora edição coordenada pela Columbia a mando do big boss.


Zinneman venceu quase todas as batalhas por A um passo da eternidade. Além de permanecer à frente do projeto, lançou mão de locações autênticas e garantiu a participação da maior parte dos atores desejados. Cohn pretendia filmar em estúdios e ter outros nomes no elenco. Graças aos esforços do diretor, o drama existencial ligeiramente crítico ao militarismo, extraído da novela de James Jones, ganhou os contornos dos rostos de Burt Lancaster, Montgomery Clift e Frank Sinatra. A associação é automática: o trio é imediatamente lembrado diante de qualquer menção a A um passo da eternidade.


A única derrota de Zinnemann se deu em torno de Julie Harris. Caberia à protagonista de Cruel desengano o papel da dancing-girl Alma “Lorene” Burke. Por causa da péssima carreira comercial desse filme, Cohn a vetou e, nesse caso, nada o faria voltar atrás. Donna Reed a substituiu. Seus olhos tristes serviram bem à composição da personagem.


A dançarina Alma 'Lorene' Burke (Donna Reed) e o soldado Robert E. Lee Prewitt (Montgomery Clift)

  
Joan Crawford e Rita Hayworth recusaram os convites para interpretar a frustrada Karen, esposa do Capitão Dana Holmes (Ober). Os motivos da negativa de Hayworth não são conhecidos. Quanto a Crawford, as razões são absolutamente fúteis: alegou desapreço pelo figurino, logo após ser rechaçada na pretensão de ter, no registro de imagens, um operador de câmera de sua inteira confiança. Felizmente, Deborah Kerr entrou em cena com a pronta aprovação de Zinnemann, Taradash e Adler. Cohn, voto vencido, considerava-a excessivamente britânica e aristocrática para representar uma esposa infeliz e infiel.


Se dependesse de Cohn, o papel de Robert E. Lee Prewitt seria de Aldo Ray ou John Derek, nunca de Montgomery Clift. Este foi a mais que sensata opção de Zinnemann desde as primeiras leituras do roteiro. Com Burt Lancaster — sempre preferido pelo trio roteirista-diretor-produtor para viver o Sargento Milton Warden — aconteceu algo parecido. O chefe queria Robert Mitchum ou Edmond O’Brien.


Porém, é na escalação de Frank Sinatra que residem as maiores controvérsias e fofocas a respeito de A um passo da eternidade. Na época, a carreira do cantor estava por um fio. Suas cordas vocais, desde 1950, enfrentavam inexplicável sangramento. Impedido de cantar, Sinatra procurou ficar em evidência na carreira de ator, desenvolvida sem maiores compromissos desde a estreia nas telas em Noites de rumba (Las Vegas night, 1941), de Ralphy Murphy. A seguir, firmou parceria com Gene Kelly em musicais como Marujos do amor (Anchors aweigh, 1945), de George Sidney, e Um dia em Nova York (On the town, 1949), de Stanley Donen e Kelly. Em 1951 estrelou Ao compasso da vida (Meet Danny Wilson), de Joseph Pevney, como um personagem que logo lhe soaria familiar: um cantor auxiliado por mafiosos na escalada ao sucesso.


O soldado Angelo Maggio, interpretado por Frank Sinatra

  
Ao tomar conhecimento do roteiro de A um passo da eternidade, Sinatra moveu céus e terra para conseguir o papel de Angelo Maggio, reservado para Eli Wallach. Começam aí os conflitos de informações. Não se sabe qual versão da história é a verdadeira ou se fazem parte de um mesmo processo. Há quem diga que Ava Gardner, esposa de Sinatra, implorou pessoalmente pelo marido junto a Harry Cohn. Para outros, todos os esforços partiram do interessado. Algumas fontes afirmam que Cohn não nutria a menor simpatia por Sinatra. Só cedeu às insistências do cantor quando ficou evidente que Wallach não poderia participar, pois estava comprometido em tempo quase integral com a peça O caminho real, de Tennessee Williams, dirigida por Elia Kazan. Também há quem alegue que Sinatra se tornou opção irresistível quando aceitou o reduzido salário de 8 mil dólares, ninharia comparada aos 150 mil de Clift e 120 mil de Lancaster. De todo modo, para muita gente boa, teria obtido o papel por obra e graça da Máfia. A organização criminosa resolveu o impasse com métodos pouco ortodoxos de convencimento. A história foi recontada em O poderoso chefão (The godfather), livro de Mario Puzo e filme de Francis Ford Coppola levado às telas em 1971: o intransigente produtor Jack Woltz (John Marley) não pretendia reservar lugar no elenco de seu mais novo filme ao decadente cantor Johnny Fontane (Al Martino). Até acordar ensopado pelo sangue de precioso cavalo de estimação. Entre os lençóis encontra a cabeça do animal.


Seja qual for a verdade, Sinatra deu conta do recado. O papel de Angelo Maggio lhe garantiu a volta por cima. Ganhou merecidamente o Oscar[2] por uma interpretação tocante, larga e arrebatadora. Daí em diante estaria sempre em evidência. Resolvido o problema das cordas vocais, firmou-se definitivamente como The Voice. Em 1955, novamente cortejado pelo Oscar, foi indicado a Melhor Ator pelo convincente desempenho de Frank Machine, carteador viciado em entorpecentes injetáveis por O homem do braço de ouro (The man with the golden arm), de Otto Preminger.


O roteiro é o principal trunfo de A um passo da eternidade. Tem por base a extensa novela autobiográfica de James Jones, com cerca de 800 páginas perpassadas por linguagem forte e adulta. Muitas passagens, à época, foram consideradas infilmáveis por problemas técnicos ou morais. Daniel Taradash reduziu o texto ao essencial. Extraiu um roteiro de 161 páginas ao qual conferiu maior visibilidade aos personagens principais: os soldados Prewitt e Maggio, o sargento Warden, as mulheres Karen Holmes e Alma “Lorene” Burke. Infelizmente, não havia como ignorar as interdições do Código de Produção e o puritanismo de amplos segmentos das plateias estadunidenses. O realismo original foi amaciado. Diálogos e situações passaram por filtro moralizador.


As personagens femininas foram sensivelmente retocadas, principalmente na redução de suas aspirações à independência. Tiveram ampliadas as pretensões por casamentos estáveis e economicamente compensadores, exigências da censura e do American way of life. Karen, impedida de se realizar na maternidade, conforma-se à situação de esposa infeliz. Tem quarto separado do marido e, ainda assim, recusa vida nova ao lado do pouco ambicioso e acomodado amante Sargento Warden. No livro, Karen tem um filho e está impossibilitada de conceber outros. Infeliz no casamento, cultiva vida francamente desregrada e manifesta a vontade de se estabelecer por conta própria, longe do Havaí. Alma Burke, no filme, é apenas uma dancing-girl necessitada de dinheiro e desejosa de contrair casamento com alguém que lhe dê respeitabilidade e estabilidade. Manifesta os mesmos anseios nas páginas de James Jones, mas ganha a vida como prostituta.


Pior foram as concessões aos militares, preço a pagar pelas filmagens em locações — as dependências do quartel no qual James Jones serviu durante a Segunda Guerra Mundial. Buddy Adler, ex-oficial com boas relações nas forças armadas, conseguiu a liberação das instalações. Em troca, a Divisão de Cinema do Departamento de Defesa dos Estados Unidos exigiu alterações nas cenas que punham em xeque a integridade do Exército. Tais passagens são evidentes. Soam falsas aos olhos e inteligência do espectador: o Capitão Dana Holmes, algoz de Prewitt, é afastado definitivamente do Exército. No romance, a punição é acompanhada com a promoção a Major. O violento e sádico sargento "Fatso" Judson (Borgnine) morre no filme pelas mãos de Prewitt. No livro, sobrevive e é condecorado. Também não foram admitidas cenas reveladoras do tratamento recebido na prisão pelo personagem interpretado por Frank Sinatra.


Apesar das concessões, A um passo da eternidade causou impacto ao apresentar passagens ousadas para a época. As plateias prendiam a respiração e ficavam no mais completo silêncio diante das cenas da praia, com Karen Holmes e o Sargento Warden. A ousadia chega ao ápice quando os dois, em trajes de banho, estirados na areia e sob o impacto das ondas, trocam um dos beijos mais provocantes do cinema. A tomada, de poucos segundos, dura o suficiente para se fixar nas retinas e mentes dos espectadores. Para realizá-la, a produção gastou um dia inteiro dentre os 41 despendidos na filmagem de todo o material. Tanto tempo, provavelmente, deve ser creditado à natural e explicável inibição dos atores. Hoje, uma das cenas antológicas do cinema pode parecer inocentemente angelical. Ao espectador dos anos 50 não é menos picante o minúsculo short — mais parecido a um atual bermudão de uso casual — vestido por Karen ao receber Warden em casa e durante dia chuvoso. Vê-se também, por parcos segundos, os grandes olhos do sargento mirando indiscretamente as pernas da esposa de Holmes.


Karen Holmes (Deborah Kerr) e o Sargento Milton Warden (Burt Lancaster)


No entanto, a direção competente, o roteiro bem costurado e as excelentes interpretações não incluem o filme na categoria de obra máxima, como pretendem os fãs mais ardorosos. A passagem do tempo conduziu A um passo da eternidade ao seu devido lugar. É um clássico, sem a menor dúvida. Está entre as realizações que marcaram época. Essa reclassificação faz mais bem que mal ao trabalho de Fred Zinnemann. Remove os atributos de obra inovadora e paradigmática que só lhe conferem ares pretensiosos. É uma produção honesta, com história densa, muito bem contada e cinematograficamente bem delineada segundo o academicismo tão bem representado pelo diretor. Zinnemann é e sempre foi um excelente armador de histórias na forma de imagens. Nunca ousou romper com a "cartilha" padronizada pela linha de montagem hollywoodiana. Quando teve liberdade e ousadia para se comunicar em linguagem mais pessoal e inventiva fez Matar ou morrer, uma peça magistral. Entretanto, mesmo conformado aos limites do academicismo, sempre trouxe à luz filmes maravilhosos como Perdidos na tormenta (The search, 1948), Cruel desengano, Uma cruz à beira do abismo (The nun's story, 1959), O homem que não vendeu sua alma (A man for all seasons, 1966) e Júlia (Julia, 1977).


A ação de A um passo da eternidade acontece em 1941, no Campo Militar de Schofield, Honolulu, capital do Havaí. Nada importante acontece no lugar. Na tela se movimentam seres comuns, às voltas com pequenos dramas de ordem individual e interesse reduzido. Em poucos meses os japoneses entrarão em cena. A base naval de Pearl Harbor está nas proximidades. A narrativa termina sob o impacto do ataque nipônico. Daí em diante tomará lugar um drama coletivo de maior escala e visibilidade. Este, sim, fará sentido à História. Deixará para trás, apartadas da memória, as questiúnculas menores até há pouco encenadas acerca dos dramas pessoais vividos por seres anônimos.


O roteiro gira basicamente em torno do cotidiano pouco atraente do Sargento Milton Warden e dos praças Robert Prewitt e Angelo Maggio, bem como de Karen Holmes e Alma Burke. Levam existências apagadas, restritas às questões amorosas, profissionais, individuais e éticas.



O beijo que marcou época: Karen Holmes (Deborah Kerr) e o Sargento Milton Warden (Burt Lancaster)


Warden, há muito afastado da ação, manifesta conformismo às atividades burocráticas. É o faz tudo do omisso Capitão Holmes. O oficial pensa somente na própria promoção. Espera consegui-la pelo acúmulo de vitórias de sua unidade em torneios de pugilismo restritos às forças armadas. As lutas, conforme acredita, geram prestígio para o Exército. Ao egoísmo e irresponsabilidade de Holmes decorre a infelicidade da esposa, a solitária Karen, por quem Warden é atraído. Os dois ensaiam um romance, mas não conseguem conciliar os rumos que elegeram para suas vidas.


A um passo da eternidade trata exatamente disto: opções e predileções. Prewitt tem as suas e se recusa a tergiversar com ordenações da consciência. Às determinações maiores do comando e da corporação, contrapõe a autonomia individual. Acredita piamente que um homem deve seguir o próprio destino se pretende ser considerado como tal. Paradoxalmente, nada é mais grave para a instituição militar. Esta não reconhece indivíduos e consciências, apenas cumpridores de ordens. Prewitt ama o exército, tanto que se engajou por 30 anos. É ex-campeão de boxe na categoria peso-médio. Chega a Schofield pressionado pela culpa por ter provocado a cegueira de um amigo durante o treinamento. Depois disso, parou de lutar. Porém, Holmes lhe facilitou a transferência atento à perícia demonstrada no ringue. Diante da determinada recusa do cadete pelas lutas, tenta dobrá-lo de todas as formas. Prewitt é escalado para os serviços mais duros e difíceis. Recebe "tratamento especial" do grupo de sargentos boxeadores (Shaughnessy, Bellaver, Reeves, Ryan e Dennis): provocações, ofensas, sabotagens, agressões, punições arbitrárias e a proibição de tocar o clarim, instrumento que domina com rara sensibilidade e perícia.


Prewitt extravasa carência. Por isso, o papel só poderia ser de Montgomery Clift com sua expressão reveladora da falta de tudo. Encontra alma gêmea em “Lorene” Burke, espécie de “senhorita corações solitários” e dançarina do New Congress Club  local ao qual todos os soldados acorrem em busca de companhia feminina. Ensaiam um romance. Porém, à semelhança de Warden e Karen, não conseguem conciliar as opções de vida.


Angelo Maggio é o melhor amigo de Prewitt. Alegre, expansivo, despreocupado, irresponsável e temperamental, entra em choque com os rigores e métodos da hierarquia militar. Seu comportamento ameaça o equilíbrio da instituição. É enquadrado exemplarmente, por meios os mais truculentos e brutais. A sorte de Maggio é lançada quando fere a susceptibilidade do sádico Sargento Judge, carcereiro da prisão à qual é recolhido depois de desacatar, bêbado, dois policiais.


O sádico Sargento 'Fatso' Judson (Ernest Borgnine)

  
Warden, Prewitt e Maggio fizeram escolhas irrecusáveis e delas não abrem mão. Marcam encontro com o destino escolhido pelas vidas solitárias que resolveram viver. Dos três, Warden corre menos riscos. Conforme diz ao final, um homem deve saber jogar, não apenas seguir de forma cega as determinações da consciência — como fizeram Prewitt e Maggio. Estes nunca encontraram o ponto de equilíbrio. São jogadores individuais. Diferentes de Warden, não conciliaram os apelos do individualismo com os compromissos institucionais. Para eles o destino chega cedo demais. Maggio morre vitimado pelas torturas recebidas na prisão. Enquanto sofria, zombava da estupidez do algoz. Prewitt toma as dores do amigo e parte para a vingança. Fere-se gravemente e busca abrigo na casa de Alma. Ainda fragilizado, resolve se reapresentar ao ouvir a notícia do ataque japonês a Pearl Harbor. Morre em consequência da própria teimosia, atingido pelo tiro da sentinela do campo ao ignorar o pedido de identificação.


A tragédia termina com Karen e Alma, por acaso juntas no convés do navio que as conduz ao continente. Lançam os últimos olhares ao Havaí. Partem sozinhas, acompanhadas unicamente pelas próprias frustrações, ao encontro dos destinos que escolheram para cumprir. Karen, certamente, continua ligada a Holmes, agora desligado do Exército após a punição por abuso de autoridade. Alma continua à espera de um homem rico para conseguir respeitabilidade e segurança. Leva de lembrança o bocal do clarim de Prewitt, dado por Warden. Não resiste à tentação de descrever o companheiro morto para Karen. Inventa; transforma-o no tipo de homem que sempre desejou.


Uma sequência ficará para sempre na memória. Não é a da praia, entre Karen e Warden, mas a do entardecer, quando Prewitt executa ao clarim o Toque do silêncio em homenagem a Maggio. O som chega aos homens pesarosos nos alojamentos. “Aposto que é Prewitt” — diz um deles. A melodia extasia a todos. Warden, no escritório do comando, calmamente apaga a luz da escrivaninha e se levanta atraído pela música. Prewitt, em primeiro plano, está tomado por lágrimas. É um momento sublime, perfeitamente realizado. O som conjugado à iluminação, às imagens dos soldados e à perspectiva dos ambientes comove a ponto de provocar arrepios.


Angelo Maggio (Frank Sinatra) morre amparado por Robert E. Lee Prewitt (Montgomery Clift)




Também é digna de nota a sequência com Warden e Prewitt bêbados e sentados à beira da estrada. Tratam de assuntos simples e ao mesmo tempo complexos, como o amor. Maggio interrompe a conversa ao surgir repentinamente, evadido da prisão e com o corpo dilacerado, à beira da morte.



 Prewitt (Montgomery Clift) toca o clarim em homenagem a Angelo Maggio (Frank Sinatra)


A um passo da eternidade poderia ter recebido outro Oscar: o de Melhor Ator para Montgomery Clift. Apesar de indicado, perdeu contra todas as previsões para William Holden por Inferno 17 (Stalag 17, 1953), de Billy Wilder.


O Sargento Milton Warden (Burt Lancaster) e Karen Holmes (Deborah Kerr)

  
Na França, a realização recebeu título horrível: Tant qu'il y aura des hommes — "Enquanto houver homens", na tradução.




Roteiro: Daniel Taradash, com base na novela From here to eternity, de James Jones. Costumes: Jean Louis. Direção musical: Morris Stoloff. Canção: Re-enlistment blues, de James Jones, Fred Karger e Robert Wells. Música de fundo: George Dunning. Orquestração: Arthur Morton. Engenheiros de som: Lord Cunningham, John P. Livadary. Supervisão de som: John P. Livadary. Penteados: Helen Hunt. Maquiagem: Clay Campbell, Robert J. Schiffer (não creditado). Assistente de direção: Earl Bellamy. Decoração: Frank Tuttle. Direção de fotografia (preto e branco): Burnett Guffey, Floyd Crosby (não creditado). Direção de arte: Cary Odell. Montagem: William A. Lyon. Consultor técnico: General de Brigada Kendall J. Fielder. Instrutor de boxe: Mushy Callahan (não creditado). Produção de elenco: Maxwell Arnow (não creditado). Dublê: John L. Cason (não creditado). Fotografia de cena: Irving Lippman (não creditado). Operador de câmera: Val O'Malley (não creditado). Joias: Joan Joseff (não creditada). Consultoria musical em música da Polinésia: Michael Goldsen (não creditado). Músico: Johnny Williams (percursão/não creditado). Publicidade (não creditada): Joe Hyams, Walter Shenson. Reconhecimento à: International Alliance of Theatrical Stage Employees (IATSE). Agradecimento especial ao: U. S. Army (não creditado). Sistema de mixagem de som: Estereofônico em três canais pela Western Electric Recording. Tempo de exibição: 118 minutos.


(José Eugenio Guimarães, 1980)



[1] Em 1966, por O homem que não vendeu sua alma (A man for all seasons), Fred Zinnemann recebeu o segundo Oscar por Melhor Direção.
[2] Sinatra tinha certeza da premiação. Sabia também que as chances seriam maiores se fosse indicado na categoria de ator coadjuvante. Como tal, pediu para ser reconhecido.