domingo, 16 de julho de 2017

UM RAPAZOLA LEVA AO CINEMA A GAROTA DE ANÍBAL MACHADO

O diretor era praticamente um menino. Entretanto, trazia alguma bagagem. Pode-se dizer que nasceu em berço esplêndido. Bruno Barreto, filho mais velho dos veteranos produtores brasileiros Lucy e Luiz Carlos Barreto, teve, desde criança, a sorte de acompanhar o pai por sets e locações de muitos clássicos da cinematografia nacional surgidos nos anos 60. Além de testemunhar os processos que originaram títulos diversos e tão significativos, iniciou cedo o aprendizado prático de realizador. Em 1966, aos 11 anos, fez o primeiro filme, um curta em 16 mm. Seguiram-se outros, nos anos seguintes, sempre em regime amador. Já acumulava experiência em 35 mm quando decidiu adentrar profissionalmente a cena da realização. Com a retaguarda dos pais, ajuda financeira da avó Lucíola Villela, colaboração do cineasta Miguel Borges na elaboração do roteiro, e o apoio de Murilo Salles no manuseio da câmera e na direção de fotografia, Bruno Barreto, aos 17 anos, transformou em filme o conto Tati, a garota, de Aníbal Machado. O resultado é a realização de mesmo nome, de 1973. Tive oportunidade de vê-la no ano seguinte, quando também registrei as boas impressões deixadas pela obra na apreciação agora submetida aos leitores deste blog. O adolescente Bruno Barreto fez um filme de gente grande. Soube contar com sensibilidade, fluidez e clareza um drama familiar sobre a trajetória pontuada de amargura, tristeza, ilusões e sonhos partidos de gente simples e tão bem representada pela jovem costureira Manuela (Dina Sfat), mãe solteira da frágil e carente garotinha Tati (Daniela Vasconcelos) — que gostaria muito de contar com a presença de um pai. Atualmente, o título da realização é registrado apenas como Tati.






Tati, a garota

Direção:
Bruno Barreto
Produção:
Luís Carlos Barreto, Lucy Barreto
Produções Cinematográficas Luís Carlos Barreto Ltda., Embrafilme
Brasil — 1973
Elenco:
Dina Sfat, Hugo Carvana, Daniela Vasconcelos, Marcelo Carvalho, Elizabeth Martins, Fábio Sabag, Wilson Grey, Wanda Lacerda, Zezé Macedo, Paulo Neves, Noelza Guimarães, Geraldo Affonso Miranda, Jane Silva, Ivone Gomes, José Bráulio, Odete Vasconcelos, Leila Carvalho, Rui Telles, Noelza Guimarães, Mariana, Luiza, Paulo, Anselmo, Eliane, Marcelo, Orlando.


O diretor Bruno Barreto em foto recente



Tati, a garota é irregular, sensível e surpreendente. Mereceu, em 1973, o Prêmio Adicional de Qualidade do Instituto Nacional do Cinema e indicou o diretor Bruno Barreto ao Troféu Dourado do Festival de Moscou.


Bruno nasceu em 1955. Teve introdução precoce no meio cinematográfico. É filho dos produtores Lucy e Luiz Carlos Barreto. O pai também é roteirista e diretor de fotografia. Dado não menos importante: o jovem realizador de Tati, a garota é dono do canino mais famoso do cinema brasileiro, a cadela que sensibilizou meio mundo como Baleia no clássico Vidas secas (1963), obra mestra de Nelson Pereira dos Santos. Quando garoto, Bruno geralmente acompanhava o pai por sets e locações. Testemunhou os nascimentos do referido título de Nelson e de Terra em transe (1967), de Glauber Rocha, produzidos e iluminados por Luiz Carlos Barreto.


Manuela (Dina Sfat) com a filha Tati (Daniela Vasconcelos)


Provavelmente, Bruno também presenciou os processos que geraram outros modernos clássicos da cinematografia nacional dos anos 60, produzidos pelo pai: Garrincha ― alegria do povo (1963), de Joaquim Pedro de Andrade; A hora e a vez de Augusto Matraga (1965), de Roberto Santos; O padre e a moça (1966), de Joaquim Pedro de Andrade; A grande cidade (1966), de Carlos Diegues; Toda donzela tem um pai que é uma fera (1966), de Roberto Farias; A vida provisória (1968), de Maurício Gomes Leite; Brasil ano 2000 (1969), de Walter Lima Jr.; e, entre outros, O dragão da maldade contra o santo guerreiro (1969), de Glauber Rocha.


Não causa estranhamento que um menino desde cedo envolvido pela atmosfera do melhor cinema resolvesse seguir carreira de cineasta. Os incentivos e facilidades estavam em casa, ao seu alcance. Estreou na realização em caráter amador aos 11 anos, em 1966, com o curta em 16 mm Três amigos não se separam. A seguir, nas mesmas bitola e metragem, vieram Bahia à vista (1967), O médico e o monstro ou Dr. Strangelove and Mr. Hyde (1968) e Divina maravilhosa (1969). Saltou para o 35 mm em 1970, com o curta Esse silêncio pode significar muita coisa. A seguir vieram, em igual metragem, A bolsa e a vida (1971) e A emboscada (1972).


Em 1973 sentiu segurança para alçar voo mais elevado: estreou profissionalmente no longa com um pequeno drama familiar extraído do universo do escritor mineiro Aníbal Machado. O conto Tati, a garota, livremente adaptado ao cinema pelo próprio Bruno em parceria com o cineasta Miguel Borges. Com a inestimável ajuda da avó Lucíola Villela como avalista e produtora associada, levantou os recursos necessários à realização. É um trabalho bonito para alguém com apenas 17 anos. Não é perfeito e seria até exageradamente descabido exigir que o fosse. Falha terrivelmente na direção de atores, em particular na condução das crianças e de seus diálogos. Tati (Daniela Vasconcelos) e amiguinhos poderiam se expressar com maior espontaneidade. A produção tomou a descuidada decisão de dublá-las com vozes em tudo discrepantes para petizes. É o único problema relevante do filme. O resto é surpreendentemente bom. A narrativa flui levemente, como se decorresse do trabalho de gente grande e experiente. Em nada se parece com realização de um adolescente que sequer tinha idade para votar e fazer o serviço militar.


Tati, a garota dividiu as apreciações. De um lado, os mais justos elogios: exaltaram a narrativa simples, direta e o tratamento sensível do assunto. No campo oposto houve a proposital tentativa de descaracterizar o diretor e a obra. Enquanto alguns perceberam falta de fluidez à história; outros classificaram o roteiro de pouco claro, a ponto de deixar a narrativa confusa. Francamente, tais problemas não se apresentam. Tati, a garota é cristalinamente claro. Pode apresentar problemas, mas não de estrutura e desenvolvimento. Porém, as piores avaliações foram externas à obra. O jovem Bruno Barreto, aos 17 anos, foi tachado de imaturo, despersonalizado e filhinho de papai, alguém que jamais enfrentou dificuldades. Ora, convenhamos!


Tati (Daniela Vasconcelos) com a mãe Manuela (Dina Sfat)


Aos olhos e sensações da personagem do título corre uma história de carências afetivas localizadas em um mundinho habitado por gente simples e sem perspectivas. A menina, com aproximados seis anos, é filha de mãe solteira — a jovem costureira Manuela (Sfat). Não conheceu o pai, marinheiro que se aventurou pelos mares de Hong Kong e jamais voltou ou enviou notícias. A presença materna, apesar de tudo, não lhe supre as carências e mal serve de companhia. Para dar conta da sobrevivência, Manuela se entrega em período quase integral aos moldes, agulhas, alfinetes e tecidos que ganham forma em sua máquina de costura. Tati passa os dias fora de casa, na companhia de amigos feitos na rua, praia e parquinhos. Geralmente é tratada com crueldade pela impiedosa ingenuidade das outras crianças. "Ela não tem pai", afirmam zombeteiramente. Defende-se como pode. Diz que muitos são os seus pais, certamente os companheiros de saídas casuais de Manuela — afinal, ninguém é de ferro, muito menos uma costureira na flor da mocidade.


A solidão de Tati (Daniela Vasconcelos)

Manuela (Dina Sfat) passa dias e noites na máquina de costura


Em busca de melhores oportunidades, Manuela trocou o bairro suburbano da Penha, Zona Norte do Rio de Janeiro, por uma quitinete alugada na cosmopolita e socialmente diversificada Copacabana. Tati, a garota começa com a mudança. Os créditos são apresentados enquanto o caminhão transporta o parco mobiliário rumo ao novo endereço. Na banda sonora a cantora Claudia Regina interpreta a amarga canção-título (música de Dori Caymmi e letra de Paulo César Pinheiro) a respeito de uma criança solitária "à mercê de triste herança" condenada "a viver a infância como nunca mais".


A relação de Tati com a mãe não é simples. É tensa, marcada por contradições. A garota não dá folga. Está em permanente busca de afeto e atenção. A toda hora pergunta pelo pai, sentida ausência que a diferencia completamente dos companheiros de folguedos. Manuela, geralmente atarefada, nem sempre apresenta disposição e paciência para lidar com as exigências de Tati. Às vezes demonstra arrependimento pela maternidade. Pensa em recomeçar a vida sobre outros fundamentos, com a opção de deixar a filha aos cuidados de uma irmã em Vigário Geral. Ainda mais quando a situação financeira começa a apertar e gera atrasos no pagamento do aluguel com a consequente ameaça de despejo. Entre as novas preocupações há uma gravidez fora de hora, drasticamente interrompida para tristeza e desespero da menina, desejosa da companhia de um irmãozinho. Desde cedo Tati conheceu situações de perda. Ressente-se disso em diversos momentos, principalmente ao se mostrar insatisfeita com a boneca lançada fora durante a mudança, em plena Avenida Brasil, ou quando resolve, na companhia da amiguinha Zuli (Martins), matar o milho há pouco germinado após saber que não ganhará o irmãozinho prometido: "O milho está muito feio. Não devia ter nascido. Vamos matar ele".


Zuli (Elizabeth Martins) e Tati (Daniela Vasconcelos)

Manuela (Dina Sfat) e Tati (Daniela Vasconcelos)


Apesar de triste e amargo, o filme não deixa de se abrir aos momentos de exceção que tornam suportáveis dias tão parecidos em suas permanentes esperas e ausências. A menina tem uma espécie de príncipe encantado ou herói que vem de longe: o carinhoso e alegre Capitão Peixoto (Carvana), comandante de um navio cargueiro. Toda vez que volta ao Brasil traz presentes e um pouco de alegria para o mundinho cinzento de Tati e Manuela — pela qual é apaixonado. Infelizmente, é visto apenas como bom amigo. Ainda assim, manifesta sincera preocupação e caloroso carinho pela garota. De certo modo preenche, sempre que aparece, o vazio deixado pela ausência paterna. Peixoto é um "autêntico lobo do mar", em permanente movimento. Não tem pouso certo e hora para chegar ou partir. Para Tati, sua presença é como a felicidade do pobre: dura pouco. Disso ela parece ter plena ciência. É emblemática a sequência da festinha de aniversário que lhe prepara, no navio, o personagem vivido por Hugo Carvana. No auge da celebração, a casinha de brinquedo erguida entre as guloseimas é furiosamente destruída pela garota com a ajuda dos amiguinhos. É como se não representasse a imagem do lar seguro e estável, mas estação provisória no meio de uma existência pontuada por perdas e recomeços, sempre ameaçada nas promessas e fundamentos. Por fim, Tati perderá também a companhia de Paulinho (Carvalho), com o qual teve difícil início de amizade. Depois que aprenderam a se gostar, ele parte com a família para São Paulo.


Hugo Carvana interpreta o Capitão Peixoto


O epílogo é aberto. Manuela resolve mais uma etapa de seu relacionamento com a filha. Quanto a isso, a plateia respira aliviada. Sabe, porém — como acontece a muitas outras crianças reais, tão parecidas a Tati —, que a história avança, incerta, sem possibilidades de garantir a seres como elas um futuro promissor. Estarão sempre na dependência de encontrar, se tiverem sorte, o apoio intermitente de figuras como o Capitão Peixoto. Tati, certamente, será uma adulta como Manuela — obrigada a tomar decisões em meio a incertezas e ilusões, em situações nem sempre favoráveis, enquanto faz cálculos de resultados destoantes sobre as possibilidades do amor, da segurança e da felicidade.


Wilson Grey em ponta como o mendigo

  
No elenco brilha a garotinha Daniela Vasconcelos. Apesar da inexperiência e da frágil direção de atores, leva o filme nas costas. Dina Sfat é presença correta. O papel de costureira suburbana lhe exige pouco. Porém, destaca-se nos momentos em que expulsa de casa as emproadas clientes granfinas e quando sai desesperada, à noite, em busca de médico para a filha adoentada. É um prazer ver Zezé Macedo como a prestativa vizinha Dona Aurora, um personagem que distancia a veterana atriz do cinema brasileiro dos estereótipos de empregadas domésticas ou feiosas abusadas aos quais esteve habitualmente relegada. Wilson Grey faz rápida aparição como mendigo.





Assistente de direção: José Carlos Matos. Roteiro: Bruno Barreto, Miguel Borges, baseados no conto Tati, a garota, de Aníbal Machado. Cenografia e costumes: Teresa Nicolau. Direção de fotografia (Eastmancolor): Murilo Salles. Montagem: Raymundo Higino. Música: Dori Caymmi, Paulo César Pinheiro. Canção-título: Dori Caymmi, Paulo César Pinheiro. Produção associada: Lucíola Vilela, Dina Sfat. Gerente de produção: Ivan Souza. Assistência de produção: Omar Costa. Continuidade: Adnor Pitanga. Operadores de câmera: Murilo Salles, Bruno Barreto. Assistência de câmera: Ronaldo Nunes. Fotografia de cena: Kunka. Direção de fotografia da segunda unidade: Ronaldo Foster. Eletricista-chefe: Roque Araújo. Maquinistas: Delmindo Peçanha, José Pinheiro, Geraldo Tolentino. Som: José Tavares. Efeitos sonoros especiais: Walter Goulart, Antônio Cezar. Ruídos de sala: José Fonseca. Técnicos de dublagem: Vitor Rapozeiro, Dino Roberto. Assistente de montagem: Ana Borges. Créditos de abertura: Visual Stil. Intérprete da canção-título: Cláudia Regina. Produção executiva: Lucy Barreto.


(José Eugenio Guimarães, 1974)