domingo, 25 de fevereiro de 2018

O PRIMEIRO FILME DE RELEVÂNCIA SOCIAL DE DAVID WARK GRIFFITH

Em 1994, nos Estados Unidos, O preço do trigo (A corner in wheat) mereceu justa inclusão no National Film Registry da Biblioteca do Congresso. Ganhou o status de obra de preservação obrigatória. Ao concebê-lo em 1909, David Wark Griffith já contava com aproximados 190 títulos na filmografia. Estreou como cineasta em 1908, 17 meses antes. Depois de muito observar e experimentar, arriscou-se com uma narrativa ousada para a época. Conta, em 14 minutos, história complexa e diferenciada. Certamente, apresentou dificuldades para ser plenamente compreendida pelo público. A ação é distribuída em seis cenários ou blocos narrativos articulados pelo recurso da montagem paralela. Econômico na inserção de intertítulos explicativos, Griffith confiou plenamente na capacidade dos espectadores para atribuir sentido e coesão ao conjunto. O preço do trigo é um conto moral como as parábolas bíblicas; um libelo contra a especulação, a ganância e a exploração dos pobres. Também pode ser percebido como porta-voz de mensagens anticapitalistas. Não custa imaginar o potencial revolucionário que teria como instrumento de agitação, conscientização e propaganda. Se viesse à luz nos anos 40, o diretor correria sério risco de ser denunciado ao Comitê de Investigação de Atividades Antiamericanas do Senador Joseph McCarthy. Conservador e puritano descendente de aristocrática família sulista arruinada pela Guerra de Secessão, Griffith geralmente se posicionava ao lado dos socialmente excluídos em muitos filmes que realizou — apesar do acintoso e grotesco racismo de O nascimento de uma nação (The birth of a nation, 1914). Filmou mais de 500 títulos em 23 anos de carreira. Desse conjunto, O preço do trigo é pioneiro na revelação de uma consciência socialmente comprometida. Segue apreciação escrita em 1985.






O preço do trigo
A corner in wheat

Direção:
David Wark Griffith
Produção: 
American Briograph
EUA — 1909
Elenco:
Os não creditados Frank Powell, Grace Henderson, James Kirkwood, Linda Arvidson, W. Chrystie Miller, Gladys Egan, Henry B. Walthall, Kate Bruce, William J. Butler, Charles Craig, Frank Evans, Edith Haldeman, Robert Harron, Ruth Hart, Arthur V. Johnson, Henry Lehrman, Jeanie Macpherson, Owen Moore, George Nichols, Anthony O'Sullivan, Billy Quirk, Gertrude Robinson, Mack Sennett, Blanche Sweet, Dorothy West.



O cineasta pioneiro David Wark Griffith 



Além da curiosidade cinéfila, sinto enorme prazer em ver ou rever os filmes marcantes dos primeiros anos do cinema — como o pouco referenciado e praticamente esquecido O preço do trigo. É fascinante acompanhar os esforços dos primeiros cineastas para romper com a simplicidade dos registros objetivos de flagrantes da vida real e enveredar por trilhas abertas pela imaginação. Ou iniciar pesquisas por processos que permitissem contar histórias mais complexas e diferenciadas. Aos olhos de hoje, frente aos avanços da narrativa fílmica, o título em apreço, de 1909, é estruturalmente singelo em seus parcos 14 minutos de duração. No entanto, expõe história multifacetada que, certamente, apresentou dificuldades à plena compreensão das plateias do final da primeira década do século 20. Com o agravante de que é distribuída por cenários distantes uns dos outros e alguns são praticamente estanques. Portanto, via de regra, não há qualquer interação entre os personagens dos seis blocos narrativos: a plantação de trigo, o escritório do especulador, a padaria, a sala de jantar/festas, a bolsa de valores e os silos de armazenamento do cereal. Todavia, tudo se articula maravilhosamente bem. O preço do trigo é conjunto dos mais integrados, coerentes e dinâmicos da primeira dentição do cinema. Ao mesmo tempo em que tecia os fios de uma narrativa complicada para “aqueles tempos”, Griffith não teve receios em tratar os simplórios espectadores como gente dotada de racionalidade e perspicácia, apta a interagir inteligentemente com as imagens e compreender relações de causa e efeito.


Griffith estreou no cinema em 1908, com As aventuras de Dollie (The adventures of Dollie). Em pouco mais de 17 meses, até dirigir O preço do trigo, trouxe à luz cerca de 190 títulos. Durante esse tempo, nada inventou. Simplesmente observou o trabalho de colegas, organizou ideias e materiais, experimentou técnicas e aperfeiçoou processos — principalmente de Edwin S. Porter, responsável por O grande roubo do trem (The great train robbery, 1903). Nesse filme, ações simultâneas em diferentes locais foram combinadas pela atualmente comum e essencial montagem paralela. Griffith também estudou o tempo de duração dos planos. Com isso, dotou-os de especificidades dramáticas em acordo com o pretendido por interpretações, ângulos, iluminação e enquadramentos. Fixou uma gramática, um repertório de expressões, uma linguagem apta a ser comunicada, absorvida e compreendida pelo poder de percepção do espectador.




As tomadas do plantio em O preço do trigo ilustram a pintura The sower, de Jean-François Millet

  
Em O preço do trigo, a montagem paralela se presta a algo mais. Não é elemento gerador de suspense ou simples apresentação das relações que perfazem o fluxo da vida. Aqui, o recurso produz comparações entre ações díspares, aparentemente desconectadas, nem sempre intencionais, mas geradoras de amplas consequências. Também permite contrapontos irônicos e críticos. São avanços consideráveis para os filmes silenciosos dos primórdios. Quer dizer: é o cinema se valendo dos próprios meios para se comunicar. Tanto é que Griffith sempre foi parcimonioso na utilização de intertítulos explicativos. Comprova, com O preço do trigo, pleno domínio da arte de enquadrar atores e acompanhá-los na aproximação e afastamento da câmera. Controla expressões corporais e gestos; trata consistentemente o tempo de exposição; faz mediações discretas entre cenas diferentes; e, acima de tudo, aprende a usar a câmera e a iluminação para sugerir atmosferas, climas e sensações diversas.


O preço do trigo é, talvez, a primeira realização social e economicamente relevante de Griffith. É impactante. Exageradamente, alguns a consideram porta-voz de mensagens revolucionárias de cunho socialista. Não há dúvidas de que se presta a esse propósito. No entanto, o cineasta descende de aristocrática e puritana família sulista arruinada pela Guerra de Secessão. Assim, é mais prudente acreditar que o recado veiculado é, sem dúvida, favorável aos agricultores arruinados do Sul. Foram explorados por empresários monopolistas e financistas inescrupulosos do Norte, ávidos por oportunidades de enriquecimento fácil. No entanto, O preço do trigo corresponde mais às parábolas bíblicas na sincera manifestação de simpatia aos remediados e deserdados, dependentes dos próprios esforços para sobreviver em condições adversas.


O agricultor (James Kirkwood) e família: a esposa (Linda Arvidson), a filha (Gladys Egan) e, ao fundo,  o pai (W. Chrystie Miller)

O especulador (Frank Powell) - sentado - e assistentes


Porém, sabe-se que o artista, de certa forma, perde a exclusividade dos direitos que detinha sobre a criação após entregá-la à apreciação do público. A peça concebida passa a receber diversas interpretações de acordo com interesses e intenções de quem a vê. De pequeno libelo contra a ganância, a usura e a exploração em geral, O preço do trigo, do conservador e moralista David Wark Griffith, se transformou em reflexão sobre o capitalismo e a especulação desmedida. Dá até para imaginar — afinal, nada custa — o próprio Lênin impressionado com o didatismo das imagens. O líder revolucionário russo certamente teria a realização em mente — caso a conhecesse — quando afirmou, anos depois: “Dentre todas as artes o cinema é para nós a mais importante”.


O roteiro elaborado pelo diretor em parceria com Frank E. Woods toma por base a novela The pit, de Frank Norris. Já as imagens iniciais são literalmente inspiradas na pintura The sower (o semeador), de Jean-Francois Millet. A câmera, invariavelmente fixa, é operada pelo lendário G. W. Bitzer. Uma família de sitiantes remediados marca presença na abertura. Diante da esposa (Arvidson) e filha (Egan), o agricultor (Kirkwood) devota respeito quase religioso às sementes de trigo que cultivará na companhia do pai idoso (Miller). Paralelamente, na metrópole, um ganancioso empresário (Powell) pensa na ampliação dos próprios ganhos. Resolve se tornar o Rei do Trigo. Na bolsa de valores, manipula o mercado e adquire todos os estoques do cereal. Por meio de controle minucioso, comercializa-o em pequenas quantidades, por valores exorbitantes. Os preços dos derivados do trigo aumentam exponencialmente. Para muitos, é impossível adquirir o pão pelo dobro do que custava. Instauram-se a fome e o desespero. A polícia é chamada para conter os tumultos. Nem os agricultores do começo da história possuem recursos para comprar pão.


Em meio à carestia generalizada, o empreendedor comemora os elevados lucros em festas e jantares. Pouco se importa com os resultados de suas ações. Diante da alienação geral, não há explicações racionais para a alta dos preços. Os famintos imploram por pão; o padeiro precisa comercializá-lo sem prejuízos; a polícia reprime; o empresário se preocupa somente com seus interesses imediatos; Entretanto, pagará caro pela ganância. Durante visita aos armazéns é atingido pela fatalidade. Tropeça e cai no interior de um silo. Morre soterrado sob toneladas de grãos aí lançadas para armazenamento. O filme retorna ao cenário inicial. O agricultor (Kirkwood), como representação geral de seus iguais, prossegue no ciclo interminável de arar e semear a terra. Vive apenas para as obrigações do presente com poucas perspectivas de futuro. A morte de um especulador específico não será suficiente para melhorar a vida precária que leva. Os ricos continuarão a lucrar com a exploração dos mais pobres. Um lento escurecimento (fade-out) encerra O preço do trigo.


Em consequência da especulação, o consumo de pão se torna inviável para os pobres


São particularmente memoráveis os planos iniciais: pai e filho avançam lentamente para a câmera no rotineiro trabalho de semear o solo. Saem do campo visual e retornam em movimento contrário. Há um clima de desolação nessa tomada, tal qual na abertura: as pobres vestes da mãe e filha são levemente agitadas pela corrente de ar. A natureza imutável é valorizada juntamente com os personagens integrados à terra e à paisagem. As cenas, carregadas de sensibilidade e respeito pelo trabalho de quem produz, também comportam lamentos. Fluem calmamente, diferente das ações apressadas nos artificiais ambientes metropolitanos.



O especulador (Frank Powell) recebe do assistente (Henry B. Walthall) a informação sobre a elevação de sua fortuna pessoal 


Vinte e três anos depois, em 1932, o cineasta dinamarquês Carl Theodor Dreyer praticamente rendeu homenagens a Griffith nos impactantes momentos finais de O vampiro (Vampyr). O personagem do médico (Jan Hieronimko) morre no interior de um silo, soterrado por grãos, tal qual o especulador de O preço do trigo.


A morte alcança o especulador (Frank Powell)


A importância pioneira da realização foi imediatamente percebida e registrada pela imprensa da época. Em Nova York, O preço do trigo se tornou o primeiro filme a merecer matéria específica nos moldes das críticas cinematográficas. Certamente, os jornais sempre trataram de cinema. Porém, título algum, até então, fora brindado com apreciação toda própria.



 
 
Roteiro (não creditado): David Wark Griffith, Frank E. Woods, com base na novela The pit, de Frank Norris, e inspirado na pintura The sower, de Jean-Francois Millet. Música (inserida posteriormente/não creditada): Robert Israel. Direção de fotografia: Johann Gottlob Wilhelm “G. W.” Bitzer (não creditado). Montagem: Jimmy Smith (não creditado). Tempo de exibição: 14 minutos.


(José Eugenio Guimarães, 1985)