domingo, 1 de abril de 2018

O INTENSO E PREMONITÓRIO “HOSPITAL” DE ARTHUR HILLER

Arthur Hiller é um dos muitos diretores estadunidenses formados pela televisão nos anos 50 e 60. No cinema, tem filmografia marcada pela irregularidade. Seu maior sucesso de público é o lacrimoso e apelativo Love story ― uma história de amor (Love story, 1970). Porém, os melhores títulos que concebeu são os menosprezados Não podes comprar o meu amor (The Americanization of Emily, 1964), Tobruk (Tobruk, 1967), O homem de La Mancha (Man of La Mancha, 1972) e o plenamente reconhecido Hospital (The hospital, 1971). Por este filme George C. Scott foi novamente indicado ao Oscar de Melhor Ator, um ano após recusar a estatueta em igual categoria por Patton ― rebelde ou herói? (Patton, 1970), de Franklin J. Schaffner. No papel do médico Herbert Bock ― profissional consciencioso e à beira do colapso nervoso em uma grande instituição hospitalar em crise ―, Scott é uma das sólidas pedras angulares da realização. A outra é o bem amarrado e complexo roteiro de Paddy Chayefsky. Hospital está entre os raros filmes capazes de antecipar os rumos de um momento histórico em gestação, quando os sinais característicos do novo tempo ainda se mostravam incompletos e embrionários. A caótica e aparentemente inadministrável organização na qual trabalha o abnegado Dr. Bock é um retrato nítido das ameaças que logo pairariam sobre o serviço público e vocações de profissionais zelosos, atentos ao bem comum. Atualmente, desde 1995, o título integra o National Film Registry da Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos como obra de preservação obrigatória pelo “reconhecido significado cultural, histórico e estético”. Vi Hospital em 1975, quando também escrevi a seguinte apreciação. De imediato fui absorvido pela narrativa em tom de comédia de humor negro nervosamente ritmada. É uma valiosa e socialmente bem contextualizada sátira em forma de alegoria política sobre os descaminhos gerais dos serviços hospitalares e da medicina.






Hospital

The hospital

Direção:
Arthur Hiller
Produção:
Howard Gottfried, Paddy Chayefsky (não creditado)
United Artists, Simcha Productions (A Howard Gottfried/Paddy Chayefsky Production in Association with Arthur Hiller)
EUA ― 1971
Elenco:
George C. Scott, Diana Rigg, Barnard Hughes, Richard A. Dysart, Stephen Elliott, Donald Harron, Andrew Duncan, Nancy Marchand, Jordan Charney, Roberts Blossom, Lenny Baker, Richard Hamilton, Arthur Junaluska, Kate Harrington, Katherine Helmond, David Hooks, Frances Sternhagen, Robert Walden, William Perlow M.D., Bette Henritze, Rehn Scofield, Dora Weissman, Carolyn Krigbaum e os não creditados Robert Anthony, Leigh Beery, Cynthia Belgrave, Norman Berns, Charles Bershatsky, Jacqueline Brookes, Lonnie Burr, Stockard Channing, Paddy Chayefsky, Alex Colon, Matthew Cowles, Reid Cruickshanks, Anita Dangler, Jean David, Lorrie Davis, Dennis Dugan, Eddie Epstein, Milton Earl Forrest, George Garcia, Julie Garfield, Richard Goode, Nat Grant, Sarina C. Grant, Christopher Guest, Bette Howard, Hughes, Paul Jott, Bruce Kornbluth, Bill Lazarus, Paul Mace, Nancy MacKay, Marja Maitland, Tony Major, Shawn McAllister, Ruth Attaway Morrison, Joy Nicholson, Bob O'Connell, Angie Ortega, Janet Paul, Lou Polan, Paul B. Price, Janet Sarno, Sab Shimono, Marilyn Sokol, Tom Spratley, John Tremaine, Tracey Walter, Paul Whaley, Gena Wheeler, Lydia Wilen.



2002: entre Ryan O'Neal e Ali MacGraw - protagonistas de Love story - uma história de amor (Love story, 1970) - o diretor Arthur Hiller  recebe o Prêmio Humanitário Jean Hersholt da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood


Rodado nas dependências do Metropolitan Hospital de Nova York, este é, até o momento, o filme mais consistente do irregular Arthur Hiller ― responsável pelos recentes Hotel das ilusões (Plaza suite, 1971) e O homem de La Mancha (Man of La Mancha, 1972). Hiller também rodou o bom Tobruk (Tobruk, 1967) ― sobre a campanha aliada contra o General Erwin Rommel no Norte da África durante a Segunda Grande Guerra ― e o injustamente menosprezado Não podes comprar o meu amor (The Americanization of Emily, 1964). É egresso da TV, para a qual trabalhou quase que ininterruptamente de 1954 a 1965. Nesse período, fez esporádicas incursões no cinema: Se a mocidade soubesse (The careless year, 1954), Ao passar do vendaval (Miracle of the white stallions, 1963) e Simpático, rico e feliz (The Wheeler dealers, 1963). Infelizmente, terá a carreira para sempre marcada pelo retumbante sucesso de público do xaroposo Love story — uma história de amor (Love story, 1970).


Hospital é frenética comédia de humor negro com pretensões de alegoria político sobre os descaminhos da organização hospitalar e da medicina. Ao mesmo tempo engraçado e assustador, deixa a plateia incomodada com a sátira às grandes instituições de tratamento de saúde. Essas unidades engessadas pela burocratização se tornaram gigantes ingovernáveis. No filme, servem de metáfora a uma sociedade enferma, desprovida de crenças amalgamadoras. As exposições beiram o absurdo de tão exageradas. O conjunto é valorizado pela luminosa atuação de George C. Scott como o abnegado Dr. Herbert Bock. Com a vida pessoal devastada pela crise conjugal e incapacidade de interagir com os filhos, procura se fiar no orgulho profissional e senso de humanidade esperado de alguém vocacionado ao salvamento de vidas. Luta quixotescamente para impor o mínimo de ordem ao hospital no qual trabalha. O lugar está prestes a fechar por decisão da municipalidade. Os esforços de Bock são sabotados por incessantes cortes de verbas, movimentos grevistas, desvios de conduta de colegas e acontecimentos escabrosos envolvendo inexplicáveis mortes de pacientes e assassinatos de médicos. Está à beira do esgotamento nervoso e pensa seriamente no suicídio. Falha na tentativa graças à intervenção da jovem Barbara Drummond (Rigg). Ela acompanha o pai idoso (Hughes) acometido de grave enfermidade. Logo uma benfazeja atração se estabelece entre o cético médico e a moça. Acertadamente, ela o percebe como a alma fraturada de um grande, feroz, impotente e acuado animal ferido.


George C. Scott como o atormentado Dr. Herbert Bock

Diana Rigg no papel de Barbara Drummond

O Dr. Herbert Bock (George C. Scott) às voltas com o ensandecido Mr. Drummond (Barnard Hughes)


George C. Scott é uma das duas sólidas âncoras do filme. O papel do Dr. Bock é difícil e o desempenho pode ser classificado de excepcional. O personagem é a representação crível, solidamente acabada, de alguém perpassado por conflitos nos planos interiores e exteriores ― neste caso, a caótica realidade envolvente. No limite, tenta manter intactos, como médico e profissional consciencioso, os ideais iluministas do serviço público ― apesar de corroídos por dentro. O Dr. Bock indicou George C. Scott, mais uma vez, ao Oscar de Melhor Ator ― um ano após recusar o prêmio em idêntica categoria pelo papel do General George S. Patton Jr. em Patton ― rebelde ou herói? (Patton, 1970), de Franklin J. Schaffner. Porém, em 1971 a estatueta terminou nas mãos de Gene Hackman pelo desempenho de Jimmy “Popeye” Doyle em Operação França (The French Connection), de William Friedkin.


O outro seguro apoio de Hospital é o rico roteiro de Paddy Chayefsky, repleto de possibilidades dramáticas. A peça valoriza principalmente atores e diálogos. O autor vinha, ao menos desde 1955, comprovando habilidade no desenho de personagens verdadeiros e plenos de humanidade na comunicação de esperanças e fragilidades. Escreveu o guião de Marty (Marty, 1955), de Delbert Mann. Teve melhores oportunidades no teatro e na TV. Chayefsky também roteirizou Não podes comprar o meu amor, um dos melhores títulos de Hiller.


O Dr. Herbert Bock (George C. Scott) tenta aliviar as tensões

Barbara Drummond (Diana Rigg) auxilia o Dr. Herbert Bock na dura rotina hospitalar


Por Hospital, Chayefsky levou o Oscar de Melhor Roteiro Original. Também foi agraciado com o Globo de Ouro, BAFTA (British Academy of Film and Television Arts) Film Award e WGA Award do Writers Guild of America. No Festival de Berlim, edição de 1971, o filme fez jus ao prêmio do OCIC ― Ofício Católico Internacional de Cinema ― endereçado a Hiller. Na ocasião, o diretor também foi laureado com o Urso de Prata (Prêmio Especial do Júri) e teve indicação ao Urso de Ouro. Ao Globo de Ouro, a realização ainda candidatou George C. Scott por Melhor Atuação Masculina em Drama e Diana Rigg por Melhor Atriz Coadjuvante.


Mr. Drummond (Barnard Hughes), Barbara Drummond (Diana Rigg) e Herbert Bock (George C. Scott)

 
No plano estético-formal, a direção de fotografia de Victor J. Kemper estampou o caos institucional e humano de Hospital ao tingir os interiores com cores fortes e escuras. Fornecem ao ambiente a aparência suja e ocre. Parece até que a ferrugem impregna o visual, como se percebe nas carcaças em lenta decomposição de navios envelhecidos e há muito abandonados às forças corrosivas dos ventos e das marés.


Os Drs. Herbert Bock (George C. Scott) e Brubaker (Robert Walden)


Hospital, de certa forma, é premonitório. Capta a respiração de um tempo que rompe com as utopias integradoras para se fazer prisioneiro da dessensibilização com as demandas do bem comum. É marcado pela fragmentação social e descrença institucional. Antecipa, com vigor, a entrada em cena dos deletérios poderes e vontades de interesses particularizados, desconectados de obrigações e comprometimentos. Prova disso é o Dr. Wellbeck (Richard Dysart), o médico celebridade, mais preocupado com ganhos obtidos na atividade privada e publicidade nas capas de revistas. Enquanto isso, o grosso de seus pacientes é negligenciado nos leitos da indiferença. Os opostos, como os doutores Brubaker (Robert Walden) e o próprio Bock são raríssimas exceções. Para o bem e o mal Hospital exibe as consequências letais do descaso médico e institucional com a saúde. Uma entidade irada, qual anjo vingador, passa a assombrar quartos e enfermarias. Troca prontuários de pacientes, conduz à morte caridosa doentes terminais em sofrimentos prolongados e assassina médicos que não honram a função.


Barbara Drummond (Diana Rigg) e Dr. Herbert Bock (George C. Scott)


Pessimista e trágico, Hospital não se rende às alternativas momentaneamente fáceis. A ingênua Barbara Drummond comparece como espécie de mítica criatura, um já anacrônico e envelhecido espírito livre que oferece ao enfastiado e desiludido Bock a promessa da salvação. A alternativa regeneradora exige o rompimento com a civilização e consequente adoção dos valores da vida comunitária numa suposta interação harmoniosa com gente simples e a natureza em reserva indígena de algum recanto mexicano. Nesse local, o pai idoso da jovem é um líder reverenciado, legitimado pela posse de milenar sabedoria compartilhada desinteressadamente com todos em prol do bem comum. Fragilizado, Bock é tentado pela miragem da radical mudança de vida. No entanto, fecha questão com o realismo. Afinal, fugir dos problemas não é a melhor saída. Decide permanecer no hospital. Apesar de tudo, é o mundo que conhece. Considera que vale a pena retornar e lutar para resolver os problemas institucionais e humanos. A ação política é o caminho e além dessa possibilidade nada resta.




Roteiro: Paddy Chayefski. Direção de fotografia (Panavision, Color DeLuxe): Victor J. Kemper. Direção de arte e desenho de produção: Gene Rudolf. Decoração: Herb F. Mulligan, Robert Reilly. Títulos: Don Record. Montagem: Eric Albertson. Música: Morris Surdin. Produtor associado: Jack Grossberg. Figurinos: Frank L. Thompson. Segundo assistente de direção: Larry Y. Albucher. Maquiagem: Vincent Callaghan. Chefe de transportes: William Curry. Casting: Marion Dougherty. Assistentes de câmera: James W. Finnerty, Jack Brown (não creditado), Sheldon Lubow (não creditado), William Ward (não creditado). Supevisão de guarda-roupa: Martin Gaiptman. Operador de câmera: Edward Gould. Mixagem de som: Dennis Maitland. Eletricista-chefe: Richard Quinlan. Supervisão de script: Barbara Robinson. Arte cênica: Bruno Robotti. Primeiro assistente de direção: Peter R. Scoppa. Consultor técnico: Evelyn Woerner. Gerente de produção: Jack Grossberg (não creditado). Estagiária do Directors Guild of America: Barbara Bass (não creditada). Carpintaria: Harry Lynott. Camareiro: Robert Reilly. Assistente de construções: Walter Way. Contrarregra: Connie Brink (não creditado). Operador de boom: Vito L. Ilardi (não creditado). Gravação de som: Gus Mortensen (não creditado). Dublê: Harry Daley (não creditado). Fotografia de cena: Josh Weiner (não creditado). Casting extra: Sybil Reich. Guarda-roupa feminino: Florence Foy (não creditado). Direção musical: Morris Surdin. Produção associada: Florence Nerlinger. Assistentes de produção (não creditados): Antonio Encarnacion, Henry Polonsky (não creditado). Auditoria da produção (não creditada): Sam Goldrich, Arthur Seewald. Secretária da produção: Terry Ladin (não creditado). Secretária para o produtor: Mary Proteau (não creditada). Publicidade: Sheldon Roskin (não creditado). Reconhecimento à: The Dept. of Public Works of the City of New York, New York City Health and Hospitals. Serviços ópticos: Imagic Inc. Tempo de exibição: 103 minutos.


(José Eugenio Guimarães, 1975)